1.1.1
O Curso Primário e o Ginásio
Eu cresci como filha do meio, a tal do
‘sanduíche’, mas nem por isso deixei de ser mimada. Em consequência de um parto
a fórceps, sofri fratura do crânio à altura do olho esquerdo, sendo acometida
por convulsões por boa parte do meu primeiro ano de vida, o que exigia cuidados
redobrados por parte de minha mãe. O
músculo do olho também foi afetado no processo, resultando em paralisia parcial
da vista esquerda e no uso de óculos, desde bem pequena, com um ocasional tapa-olho.
Isso foi motivo para muito ‘bulling’ por parte de coleguinhas da escola, para
quem eu era a ‘zarolha’, a ‘quatro-olhos’, a ‘vesguinha’ e por aí vai. Tudo
compensado – ainda bem - pelos carinhos, cuidados e mimos da família. Mas creio
que vem daí, desse ‘bulling’ sofrido quando criança devido a essa deficiência
visual, minha empatia para com as pessoas discriminadas, excluídas,
subalternas. E de me sentir desde pequena na escola como uma ‘forasteira
dentro’ (HILL-COLLINS, 1984), alguém que estava lá, mas não pertencia de fato
ao grupo. Acrescente-se aqui o fato de meu sobrenome ter origem judaica em uma
época em que o preconceito contra judeus ainda era grande no país!
Com meu pai, Izalco, em frente à casinha de bonecas no nosso apto. na Rua Augusta (1953)
As progressões de meu pai na carreira
bancária, em um período em que funcionários do Banco do Brasil ainda gozavam de
prestígio, privilégios e de um salário razoável, possibilitariam que eu
usufruísse das benesses de família de classe média ‘remediada’. Assim, desde
pequena, seguindo os passos de minha irmã e os conselhos médicos do
oftalmologista de que a dança poderia me ajudar a ter mais equilíbrio nos
movimentos, frequentei os cursos de ballet da academia de D. Kitty Bodenheim,[1]
bailarina alemã vinda ao Brasil por ocasião da ‘Semana de Arte Moderna’ de
1922. Ela se apaixonou por nossa terra e ficou por aqui, tornando-se famosa por
seu estúdio de ballet para meninas e jovens, que dançavam em festivais anuais
encenados no Teatro Municipal de São Paulo e no de Campinas. Foi assim que
pisei nesses palcos como ‘Dunga’ (em 1956) dos Sete Anões e ‘anjinho’ e
‘cupido’ na ‘Oficina do Papai Noel’ (em 1957). Fui também um ‘miosótis’
dançando, ao vivo, no Programa ‘Teatro da Juventude’ da TV Tupi de São Paulo,
quando tive ocasião de conhecer Júlio Gouveia e Tatiana Bellinki, grandes
educadores e teatrólogos dedicados à infância e juventude.[2]
De 'anjinho' no Recital "Oficina do Papai Noel"
Estúdio Kitty Bodenheim, 1956
Por
certo, o ballet me ajudou a vencer muitos medos causados pelo preconceito
sofrido, ainda mais quando, em um evento de encerramento do ano no Externato
Nossa Senhora de Lourdes, onde cursei o jardim de infância e o primário até o
2o. ano, fui a ‘estrela’ da festa, dançando a ‘Aquarela do Brasil’ vestida de
baiana – e sem meus óculos. Que felicidade!
Turma do Jardim da Infância no Nossa Senhora de Lourdes (1953)
Mas, confesso que, apesar do ‘bulling’ e do
rígido regime disciplinar imposto pelas diretoras, D. Nelly e D. Aracy (morria
de medo delas!), trago boas lembranças dessa minha primeira escola. Também,
pudera: escola particular, voltada para crianças das classes privilegiadas,
oferecia um ensino excelente (inclusive com iniciação à língua francesa já no
jardim da infância). Usufruí bastante do que me ofereciam, ganhando gosto pelo
estudo e destacando-me sempre entre as/os ‘primeiros/as da classe – talvez
mesmo por compensação![3]
No 3º ano primário, com o nascimento de meu
irmão e a mudança da família para a casa na Alameda Ministro Rocha Azevedo,
passei a frequentar o Externato Meira, na Rua Padre João Manuel, bem mais perto
de casa, me enturmando bem com as crianças da vizinhança, muitas estudantes da
mesma escola. Assim, mesmo com os óculos e a ‘zarolhice’ causada pela paralisia
na vista, conseguia vencer o ‘bulling’ pulando corda no recreio e na rua e me
esmerando no ‘bambolê’. Essa escola, também particular e para crianças das
camadas médias, oferecia, como a outra, bom ensino com iniciação à língua
inglesa, contribuindo para que eu tivesse uma ótima formação primária. Mas, no
4º ano, meus pais me transferiram para o Colégio Sacré-Coeur de Marie, no
Jardim Europa, colégio de freiras onde minha irmã Sonia estudava. Excelente aluna, ela me deixou um exemplo
difícil a seguir!
Como outros colégios confessionais de freiras
de tradição francesa, só para meninas, criados no primeiro cartel do século
passado, também o Sacré-Coeur de Marie começou como um dos “[...] refinados educandários para as moças da sociedade
daquela época”(BRITTO, 2009, p.41).[4] No
início dos anos sessenta, contudo, quando eu ainda frequentava o ginásio,
procedeu-se, gradativamente, a uma mudança de orientação na formação das jovens
– de uma formação voltada apenas para ‘o lar’, para uma em que se vislumbrava o
ingresso de mulheres no ensino superior e sua participação em atividades
sociais e produtivas (MORRA, 2009; NUNES, 2000).
Em especial, inspiradas na Teologia da
Libertação, algumas freiras do Colégio passaram a dar grande importância a
nossa participação na ação pastoral, com destaque para a Ação Católica,
levando-nos a participar da Juventude Estudantil Católica – a JEC.[5] Assim,
todas as terças-feiras, pela manhã, eu seguia com Mère Consolata e algumas
colegas do ginásio para fazer um trabalho de catequese e de ação social na
antiga Favela do Aeroporto (destruída depois por Jânio Quadros). Aos domingos,
bem cedo, ia de ônibus da escola com uma turma de meninas do Sacré-Coeur de
Marie e rapazes do Colégio São Bento fazer trabalho semelhante em Vila
Carolina. É claro que aí rolava muita “paquera” e namoro junto com as outras
atividades; mas isso contribuía para manter nosso interesse nesse trabalho.
Ademais, essas práticas missionárias nos permitiam ter uma aproximação com uma
realidade bastante diferente da nossa e incentivar nosso compromisso com uma
ação transformadora da sociedade.
Mas, vejam as contradições: ao
lado de tais atividades, eu participei, também, no início dos anos 1960, das
aulas de dança de salão da Madame Poças Leitão, então oferecidas na sede da
Associação Cristã de Moças, na Alameda Campinas, espaço seleto da direita
paulista.[6]
Ali sim corria solta a ‘paquera’ entre as jovens meninas dos colégios de
freiras e os rapazes dos colégios de ordem religiosa, como o São Bento, o São
Luís, o Santa Cruz, enquanto aprendíamos a dançar marcha, bolero, swing, tango,
valsa e, é claro, rock’n roll! De fato, dancei
muito rock, twist, hully-gully, passo do elefantinho e iê-iê-iê nas festinhas
da época, com o pessoal da “turma da Rocha Azevedo” e vizinhanças, gente com quem
joguei “queimada” (ou ‘baleado’) na rua e, anos mais tarde, troquei as
primeiras juras de amor.
Dançando de 'arminho' em um dos festivais de Mère Aparecida no Sacrè-Coeur (1959)
No Sacré-Coeur de Marie,
participei também dos festivais de dança de Mére Aparecida, de quadrilhas e
peças teatrais – uma vez até vestida de freira (!) –, de times de vôlei e das
atividades do nosso Grêmio Estudantil, para o qual fui eleita vice-presidente
em 1963, meu último ano de ginásio e, sem dúvida, o último dos ‘anos dourados’
para a minha geração. No ano seguinte, 1964, fui cursar o científico no Colégio
das Cônegas de Santo Agostinho, mais conhecido por Colégio Des Oiseaux. Eu
cursava aí o primeiro ano científico
quando, no final de março daquele ano, aconteceu o golpe que instalou no
país a ditadura militar sob a qual minha geração viveu toda a sua juventude,
adentrando pela vida adulta.
Turma do Ginásio no Sacrè-Coeur de Marie
(1963)
Com meu pai, no Baile de Formatura de Ginásio (1963)
[1] Sobre Kitty
Bodenheim, veja –se: http://dancamoderna.com.br/2015/danca-moderna-no-brasil-os-pioneiros/. Veja-se, ainda,
SOARES(2002).
[3] Os Externatos
dos quais tenho notícia em São Paulo, tais como, o Nossa Sra. de Lourdes, o
Elvira Brandão, o Ofélia Fonseca, foram criados e dirigidos por mulheres,
muitas vezes duplas de irmãs, professoras, que impunham temor aos alunos,
assumindo uma postura dita ‘masculina’. Eram, por assim dizer, mais ‘reais que
o rei’, ou seja, mais rígidas e disciplinadoras que homens diretores de
escola.
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