quarta-feira, 6 de abril de 2016

Capítulo I - O Curso Primário e o Ginásio

1.1.1 O Curso Primário e o Ginásio

Eu cresci como filha do meio, a tal do ‘sanduíche’, mas nem por isso deixei de ser mimada. Em consequência de um parto a fórceps, sofri fratura do crânio à altura do olho esquerdo, sendo acometida por convulsões por boa parte do meu primeiro ano de vida, o que exigia cuidados redobrados por parte de minha mãe.  O músculo do olho também foi afetado no processo, resultando em paralisia parcial da vista esquerda e no uso de óculos, desde bem pequena, com um ocasional tapa-olho. Isso foi motivo para muito ‘bulling’ por parte de coleguinhas da escola, para quem eu era a ‘zarolha’, a ‘quatro-olhos’, a ‘vesguinha’ e por aí vai. Tudo compensado – ainda bem - pelos carinhos, cuidados e mimos da família. Mas creio que vem daí, desse ‘bulling’ sofrido quando criança devido a essa deficiência visual, minha empatia para com as pessoas discriminadas, excluídas, subalternas. E de me sentir desde pequena na escola como uma ‘forasteira dentro’ (HILL-COLLINS, 1984), alguém que estava lá, mas não pertencia de fato ao grupo. Acrescente-se aqui o fato de meu sobrenome ter origem judaica em uma época em que o preconceito contra judeus ainda era grande no país!





Com meu pai, Izalco, em frente à casinha de bonecas no nosso apto. na Rua Augusta (1953)


As progressões de meu pai na carreira bancária, em um período em que funcionários do Banco do Brasil ainda gozavam de prestígio, privilégios e de um salário razoável, possibilitariam que eu usufruísse das benesses de família de classe média ‘remediada’. Assim, desde pequena, seguindo os passos de minha irmã e os conselhos médicos do oftalmologista de que a dança poderia me ajudar a ter mais equilíbrio nos movimentos, frequentei os cursos de ballet da academia de D. Kitty Bodenheim,[1] bailarina alemã vinda ao Brasil por ocasião da ‘Semana de Arte Moderna’ de 1922. Ela se apaixonou por nossa terra e ficou por aqui, tornando-se famosa por seu estúdio de ballet para meninas e jovens, que dançavam em festivais anuais encenados no Teatro Municipal de São Paulo e no de Campinas. Foi assim que pisei nesses palcos como ‘Dunga’ (em 1956) dos Sete Anões e ‘anjinho’ e ‘cupido’ na ‘Oficina do Papai Noel’ (em 1957). Fui também um ‘miosótis’ dançando, ao vivo, no Programa ‘Teatro da Juventude’ da TV Tupi de São Paulo, quando tive ocasião de conhecer Júlio Gouveia e Tatiana Bellinki, grandes educadores e teatrólogos dedicados à infância e juventude.[2]
De 'anjinho'  no Recital "Oficina do Papai Noel"
Estúdio Kitty Bodenheim, 1956


 Por certo, o ballet me ajudou a vencer muitos medos causados pelo preconceito sofrido, ainda mais quando, em um evento de encerramento do ano no Externato Nossa Senhora de Lourdes, onde cursei o jardim de infância e o primário até o 2o. ano, fui a ‘estrela’ da festa, dançando a ‘Aquarela do Brasil’ vestida de baiana – e sem meus óculos. Que felicidade!



Turma do Jardim da Infância no Nossa Senhora de Lourdes (1953)


Mas, confesso que, apesar do ‘bulling’ e do rígido regime disciplinar imposto pelas diretoras, D. Nelly e D. Aracy (morria de medo delas!), trago boas lembranças dessa minha primeira escola. Também, pudera: escola particular, voltada para crianças das classes privilegiadas, oferecia um ensino excelente (inclusive com iniciação à língua francesa já no jardim da infância). Usufruí bastante do que me ofereciam, ganhando gosto pelo estudo e destacando-me sempre entre as/os ‘primeiros/as da classe – talvez mesmo por compensação![3] 
No 3º ano primário, com o nascimento de meu irmão e a mudança da família para a casa na Alameda Ministro Rocha Azevedo, passei a frequentar o Externato Meira, na Rua Padre João Manuel, bem mais perto de casa, me enturmando bem com as crianças da vizinhança, muitas estudantes da mesma escola. Assim, mesmo com os óculos e a ‘zarolhice’ causada pela paralisia na vista, conseguia vencer o ‘bulling’ pulando corda no recreio e na rua e me esmerando no ‘bambolê’. Essa escola, também particular e para crianças das camadas médias, oferecia, como a outra, bom ensino com iniciação à língua inglesa, contribuindo para que eu tivesse uma ótima formação primária. Mas, no 4º ano, meus pais me transferiram para o Colégio Sacré-Coeur de Marie, no Jardim Europa, colégio de freiras onde minha irmã Sonia estudava.  Excelente aluna, ela me deixou um exemplo difícil a seguir! 
Como outros colégios confessionais de freiras de tradição francesa, só para meninas, criados no primeiro cartel do século passado, também o Sacré-Coeur de Marie começou como um dos “[...] refinados educandários para as moças da sociedade daquela época”(BRITTO, 2009, p.41).[4] No início dos anos sessenta, contudo, quando eu ainda frequentava o ginásio, procedeu-se, gradativamente, a uma mudança de orientação na formação das jovens – de uma formação voltada apenas para ‘o lar’, para uma em que se vislumbrava o ingresso de mulheres no ensino superior e sua participação em atividades sociais e produtivas (MORRA, 2009; NUNES, 2000).
 Em especial, inspiradas na Teologia da Libertação, algumas freiras do Colégio passaram a dar grande importância a nossa participação na ação pastoral, com destaque para a Ação Católica, levando-nos a participar da Juventude Estudantil Católica – a JEC.[5]  Assim, todas as terças-feiras, pela manhã, eu seguia com Mère Consolata e algumas colegas do ginásio para fazer um trabalho de catequese e de ação social na antiga Favela do Aeroporto (destruída depois por Jânio Quadros). Aos domingos, bem cedo, ia de ônibus da escola com uma turma de meninas do Sacré-Coeur de Marie e rapazes do Colégio São Bento fazer trabalho semelhante em Vila Carolina. É claro que aí rolava muita “paquera” e namoro junto com as outras atividades; mas isso contribuía para manter nosso interesse nesse trabalho. Ademais, essas práticas missionárias nos permitiam ter uma aproximação com uma realidade bastante diferente da nossa e incentivar nosso compromisso com uma ação transformadora da sociedade.




Mas, vejam as contradições: ao lado de tais atividades, eu participei, também, no início dos anos 1960, das aulas de dança de salão da Madame Poças Leitão, então oferecidas na sede da Associação Cristã de Moças, na Alameda Campinas, espaço seleto da direita paulista.[6] Ali sim corria solta a ‘paquera’ entre as jovens meninas dos colégios de freiras e os rapazes dos colégios de ordem religiosa, como o São Bento, o São Luís, o Santa Cruz, enquanto aprendíamos a dançar marcha, bolero, swing, tango, valsa e, é claro, rock’n roll!  De fato, dancei muito rock, twist, hully-gully, passo do elefantinho e iê-iê-iê nas festinhas da época, com o pessoal da “turma da Rocha Azevedo” e vizinhanças, gente com quem joguei “queimada” (ou ‘baleado’) na rua e, anos mais tarde, troquei as primeiras juras de amor.




Dançando de 'arminho' em um dos festivais de Mère Aparecida no Sacrè-Coeur (1959)


No Sacré-Coeur de Marie, participei também dos festivais de dança de Mére Aparecida, de quadrilhas e peças teatrais – uma vez até vestida de freira (!) –, de times de vôlei e das atividades do nosso Grêmio Estudantil, para o qual fui eleita vice-presidente em 1963, meu último ano de ginásio e, sem dúvida, o último dos ‘anos dourados’ para a minha geração. No ano seguinte, 1964, fui cursar o científico no Colégio das Cônegas de Santo Agostinho, mais conhecido por Colégio Des Oiseaux. Eu cursava aí o primeiro ano científico  quando, no final de março daquele ano, aconteceu o golpe que instalou no país a ditadura militar sob a qual minha geração viveu toda a sua juventude, adentrando pela vida adulta.




Turma do Ginásio no Sacrè-Coeur de Marie
 (1963)

















Com meu pai, no Baile de Formatura de Ginásio (1963)






















[1] Sobre Kitty Bodenheim, veja –se: http://dancamoderna.com.br/2015/danca-moderna-no-brasil-os-pioneiros/. Veja-se, ainda, SOARES(2002).
[3] Os Externatos dos quais tenho notícia em São Paulo, tais como, o Nossa Sra. de Lourdes, o Elvira Brandão, o Ofélia Fonseca, foram criados e dirigidos por mulheres, muitas vezes duplas de irmãs, professoras, que impunham temor aos alunos, assumindo uma postura dita ‘masculina’. Eram, por assim dizer, mais ‘reais que o rei’, ou seja, mais rígidas e disciplinadoras que homens diretores de escola.  
[4] Veja-se, também, HENRIQUES (2006)

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