quarta-feira, 6 de abril de 2016

Capítulo I - Descobrindo o feminismo

 1.2.3 Trabalho no Banco e Aprendizado de Classe em Decatur, Illinois

Nós últimos seis meses que passei em Sumter, South Carolina, comecei a buscar meios de voltar a estudar, pensando em ingressar no campus local da University of South Carolina (USC). Tratava-se de uma universidade pública, estadual, mas, como todas as universidades públicas nos Estados Unidos, era paga, as taxas de matrícula estando muito além das minhas possibilidades. Conversando sobre esse meu interesse com minha colega de trabalho no balcão de joias, que estudava na USC, fiquei sabendo do grande déficit de professores/as, principalmente para escolas de primeiro grau, que caracterizava aquele período na Carolina do Sul e da possibilidade de conseguir uma bolsa. Fiquei sabendo também que, em virtude desse déficit, as escolas paroquiais estavam aceitando estudantes como professoras/es, muito embora para se lecionar mesmo no primeiro grau fosse necessário ter um curso de graduação.
 Fui então conversar com o pároco da igreja perto de onde eu morava, que tinha escola vinculada, e descortinou-se a possibilidade de dar aulas lá, contanto que eu voltasse a estudar – o que pretendia fazer, mediante uma bolsa para futuros professores. No entanto, nesse interim, meu marido recebeu ordens de relocação, estipulando que se apresentasse na base aérea de San Francisco, Califórnia, dentro de um mês, onde pegaria o avião para as Filipinas, lá ficando até o fim do seu período de serviço militar na Aeronáutica.
Pensei muito em ficar em Sumter, seguindo meus planos. Mas, por força do custo de vida e do salário reduzido que receberia na escola paroquial (a bolsa da USC só cobriria as taxas escolares), bem como da pressão de familiares, inclusive do meu próprio marido para que eu não “ficasse sozinha em um lugar estranho” (condição de gênero!), acabei voltando ao Brasil, indo morar com meus pais até que meu marido terminasse seu período de serviço nas Filipinas. Foram cerca de seis meses em que eu fiquei, em compasso de espera, não conseguindo adiantar meus estudos nem encontrar trabalho fora das aulas particulares de inglês, sentindo-me, por assim dizer, em um limbo, sem controle do meu próprio destino.
Comecei então a me preparar para prestar novo vestibular no Brasil, mas, com o retorno de meu marido das Filipinas, em janeiro de 1970, voltamos para Decatur, Illinois, sua cidade natal e onde eu havia morado como estudante do AFS. Essa foi também uma situação temporária, porquanto aguardávamos os resultados da sua solicitação de matrícula na Southern Illinois University (SIU-E),[1] na cidade de Edwardsville, bem como do pedido da bolsa do governo americano para veteranos – a tal de “GI Bill” – para financiar seus estudos.  Nesse meio tempo, comecei a trabalhar em um banco, o Citizen’s National Bank of Decatur,[2] iniciando no ‘departamento geral,’ que cuidava da correspondência, passando depois por diferentes departamentos como parte do meu treinamento para me tornar teller, uma caixa de banco.
Esse período passado em Decatur mostrou-se bastante revelador no tocante ao ‘habitus de classe’ de diferentes segmentos da população local.[3] Eu estava sempre em contato com minha ‘família americana’,  a família com a qual eu havia morado durante meu ano do AFS (e com a qual ainda mantenho fortes laços de amizade!). Tratava-se de uma família de classe média alta, apreciadora do bom e do melhor sem, contudo, cair no esnobismo ou consumismo. Ao contrário, os membros da família tinham poucas peças de vestuário, mas eram de boa qualidade, duradouras, o mesmo em relação aos carros que dirigiam. No entanto, frequentavam o ‘country club’, moravam em bairro nobre, passavam férias de inverno na Flórida e de verão no Lago Michigan e todos os filhos faziam faculdade em universidades privadas.  Eram católicos, de origem irlandesa, mas abraçavam perspectivas políticas ditas ‘progressistas’: um dos meus ‘irmãos’ foi um conscientious objector, ou seja, não serviu o exército por convicções pacifistas, o outro integrou o ‘Peace Corps’ (Corpo de Voluntários da Paz), trabalhando por mais de três anos como voluntário na Ilha de Truk, famosa para nós, antropólogas e antropólogos, pelo trabalho de Ward Goodenough.[4]
Já a família de meu marido, com a qual convivi bem de perto, era de classe trabalhadora. Os pais eram divorciados e meu sogro trabalhava com britadeiras para o Departamento de Energia Elétrica de Illinois, perfurando o solo para instalar redes elétricas subterrâneas na cidade. Ele morava em um trailer, mas dirigia um carro imenso, luxuoso e não perdia um jogo de baseball do seu time, não importando onde fosse o jogo. O marido de minha sogra era operário da Caterpillar, uma indústria fabricante de tratores, bastante ligado ao pessoal do sindicato, filiado ao AFL-CIO, uma das maiores centrais sindicais dos Estados Unidos. Mas há de lembrar que os sindicatos norte-americanos naquele período (anos 1960-1970) não primavam por ideias progressistas...
Minha sogra, Vera, era pentecostal, bastante religiosa, dedicando-se às funções da sua igreja, que lhe tomavam várias noites por semana. Afora a igreja e a família, sua grande paixão eram as yard ou garage sales, que aconteciam principalmente na primavera, quando as famílias faziam uma limpeza geral nas suas casas e vendiam o que não mais queriam em liquidações, com as peças (de roupas velhas a móveis ou até mesmo velhos automóveis) expostas nos jardins ou garagens.  Em geral, essas sales eram (e ainda são, creio eu!) marcadas para os sábados, com anúncios publicados nos jornais locais, atraindo muita gente, mulheres em especial. Na verdade, eram atividades menos rentáveis em termos monetários do que sociais, ou seja, funcionavam mais como espaços de sociabilidade para as mulheres de uma comunidade, tanto como vendedoras, quanto compradoras.[5]
E, de fato, eu frequentava essas sales com minha sogra, mais como diversão. Geralmente, saíamos cedo, com a listagem dos anúncios publicados no jornal nas mãos, visitando quatro a cinco casas em uma manhã. Minha sogra sempre encontrava gente conhecida e ficava ‘jogando conversa fora’ aqui e ali, mas nós duas sempre voltávamos com um monte de coisas, muitas sem a menor utilidade, que comprávamos nessas ocasiões (aliás, identifico em minha mesa de trabalho pelo menos dois objetos que adquiri nessas liquidações!).
Vera era de origem rural e vez por outra íamos visitar seus pais no sítio em que moravam. Eles haviam penado durante os anos da Grande Depressão e viviam apenas de uma pequena aposentadoria (“social security”), fazendo aproveitamento total de tudo pela casa! Até as flores de abóbora (‘pumpkin blossoms’) empanadas serviam de alimentação (uma delícia, por sinal), o frango ensopado sendo engrossado por uns bolinhos de chuva (‘chicken’ dumplings’) para render mais, as latas aproveitadas como regadores e canecos, um grande fogão à lenha para aquecer a casa toda no inverno. Quando vejo o quadro “American Gothic” de Grant Wood,[6] sempre me lembro deles: Grandma Harrington de vestido de florzinhas até quase o tornozelo, Grandpa Harrington com um macacão, tal qual o da referida pintura!
Destaco essas questões neste memorial, pois os contrastes de classe entre os dois núcleos familiares que eu frequentava então eram imensos, me permitindo ter uma visão mais ampla da vida das famílias americanas como a ‘forasteira dentro’ que eu era, para usar, mais uma vez, da perspectiva de Patricia Hill Collins (1985).  Essa vivência contribuiu para que eu fosse construindo, aos poucos, uma noção de classe muito mais abrangente do que a definição estrutural (‘lugar ocupado no processo de produção’), tão ao gosto do Marxismo estruturalista. Fui me dando conta, aos poucos, da relevância dos diferentes valores, ideologias e práticas de classe cotidianas, que são parte constitutiva das vivências de classe, ou o que eu mais tarde, ao ler Pierre Bourdieu (1979), compreenderia tratar-se de habitus de classe.



1.2.4  Sofrendo Discriminação de Gênero no Trabalho e Descobrindo o Feminismo

Com o início do semestre letivo na Southern Illinois University, Campus de Edwardsville, em setembro de 1970, nos mudamos primeiro para uma casinha em  Bethalto, Illinois, na época, um povoado com pouco mais de 1000 habitantes, relocando, depois, para um apartamento em Edwardsville, Illinois, onde ficava a universidade.  Antes mesmo de nos mudarmos, fui procurar emprego como teller (caixa bancária) no Edwardsville National Bank and Trust Co.,[7] o principal banco da cidade.  Acabei trabalhando ali por quatro anos, não só aprendendo bastante sobre bancos e fazendo grandes amizades (que preservo até hoje), como também começando a me conscientizar sobre a discriminação contra a mulher no espaço de trabalho.

Town House em Bethalto, IL, 1970




 Aliás, tal conscientização já fora despertada na primeira entrevista com o presidente/gerente do banco, quando ele me perguntou o que eu fazia para evitar filhos! Eu tinha só 22 anos de idade e não costumava falar sobre tais questões, muito menos com um homem totalmente estranho. Confesso que fiquei bastante chocada, mas não me dei por vencida. Perguntei-lhe por que o interesse nessa questão da minha vida pessoal, ao que ele respondeu: “Não vamos treinar você para o cargo e daqui a seis meses você engravidar!” Por certo tal questão jamais era colocada para os homens.
Várias outras questões que emergiram no curso do trabalho me deixaram alerta para as desigualdades de gênero, sobretudo no que diz respeito à divisão sexual de tarefas, cargos e os salários correspondentes. Por exemplo, nos porões do banco havia uma copa-cozinha, usada pelos funcionários e funcionárias para as ‘breaks’ e horário de almoço, já que quase todo mundo – pelo menos todo o ‘baixo clero’ do banco – levava sua marmita. A cada semana, uma das funcionárias (por ordem alfabética) ficava encarregada da limpeza dessa copa-cozinha: os homens estavam livres desse encargo. Cabia a eles abrir e fechar o banco, uma responsabilidade que também era semanal, mas vista como tarefa essencialmente masculina.
Eu aprendi logo os procedimentos do banco e acabei me tornando uma das treinadoras de novos ‘tellers’.  Treinei mulheres e homens, até que um dia descobri que eu ganhava menos que os ‘trainees’. Não tive dúvidas, fui tomar satisfações com o presidente: por que eu ganhava menos? Ora, me disse ele, você está aqui porque seu marido é aluno da SIUE. Daqui a pouco ele se forma e vocês vão embora; por que investir em alguém que não vai ficar conosco?  Fazia sentido, mas era só meia verdade, pois vários dos trainees que passaram por mim também estudavam na SIUE e foram embora quando se formaram: mas, eles eram homens!
Apesar de tudo isso, eu gostava muito do meu trabalho, principalmente o fato de lidar diretamente com o público. Na época de Natal, eu me divertia vestida de ‘Mother Christmas’ (ou Mamãe Noel), sentada em uma mesa ao lado da nossa grande árvore de Natal vendendo carnês de “Christmas’ Clubs”. Tratava-se de um tipo de poupança com depósitos semanais (de cinco, dez, vinte cinquenta ou cem dólares), só sendo possível descontar o tal carnê no final do ano, com os juros incluídos.


Em frente à árvore de Natal do Edwardsville National Bank com a 
bonequinha que vesti de baiana e acabei ganhando o 1o.lugar no concurso do banco
(1971)


Nesse banco, trabalhei em vários setores e diferentes janelas de atendimento como teller. Fiz muita hora extra trabalhando aos sábados, pela manhã, na “walk up window”, uma janela de teller que abria para a calçada e, às sextas-feiras, na ‘drive-in window’, uma janela nos fundos do banco que atendia pessoas em seus carros.  Naquela época (1970-1974), é bom lembrar, quase nada era automatizado, nem mesmo a gaveta onde as transações na janela do walk-up e drive-in eram passadas: era tudo na base do ‘muque’ mesmo. Lembro-me que ao fim do dia (nas sextas-feiras trabalhávamos até às 19h30) eu saía de lá com o braço doído, de tanto empurrar e puxar a tal gaveta!
Grande parte dos clientes que eu atendia na janela do drive-in era de operários da Granite City Steel, uma imensa siderúrgica localizada em uma cidade vizinha. Eles vinham com suas esposas depositar o salário semanal, mas, quem controlava os depósitos dos cheques eram as mulheres. Elas depositavam a maior parte do valor do cheque na conta, descontando uma pequena quantia em dinheiro para ser dividida com os companheiros. Muitas das minhas colegas de banco eram casadas com operários da Granite City Steel e pude observar que elas também se encarregavam de fazer todos os pagamentos da casa, tomando conta do dinheiro da família. Esse era também o procedimento que observara ter lugar na casa de minha sogra e entre outras famílias operárias americanas com as quais convivi naquela época, um costume bastante diferente das famílias operárias que mais tarde viria a estudar em Salvador.
No banco, durante o verão, quando acontecia o Mississipi River Festival – algo semelhante ao Rock in Rio que se estendia por algumas semanas – eu ficava encarregada da venda dos bilhetes no banco e de contar e depositar as somas arrecadadas com a venda das bilheterias durante os shows. Eu contava sacolas e mais sacolas de dinheiro – nem consigo imaginar hoje a quantidade de dólares que já passaram por minhas mãos!  -, mas era bastante rápida e precisa na contagem!  Tinha o maior orgulho desta minha habilidade, orgulho de um trabalho bem feito!  A lembrança desse orgulho me permitiu empatizar com as operárias que estudei anos mais tarde, quando me falavam do orgulho das peças que produziam como tecelãs! 



Colegas do Edwardsville National Bank
1973



Os últimos dois anos que passei em Edwardsville (1972-1974) foram os melhores. Primeiro, porque eu comecei a me envolver com o movimento feminista. Com efeito, foi ali que comecei a participar das reuniões semanais do comitê local da National Organization for Women – NOW, me envolvendo também na campanha presidencial de George McGovern, que tinha o apoio das feministas da NOW e que se opunha a guerra do Vietnã.   Ao mesmo tempo, eu finalmente voltara a estudar! Isso se tornou possível só depois que conseguimos moradia no Campus da Southern Illinois University, em um apartamento subsidiado para alunos com família, o que significou uma grande economia nos gastos com aluguel, permitindo que eu voltasse a estudar, cursando disciplinas à noite.


                                             
1.2.5 Cursos noturnos na Southern Illinois University- Edwardsville, SIUE (1970-1974)

Em grande parte das universidades norte-americanas, como no caso da SIUE, os dois primeiros anos são bastante abertos, interdisciplinares, só se fechando mais nos dois últimos anos, quando se faz a concentração na área, ou ‘major’, que se pretende cursar. Quem estuda só à noite, contudo, tem um leque de escolhas bem menor, mas, assim mesmo, tive oportunidade de cursar ótimas disciplinas.
A SIUE funcionava então na base trimestral, assim, no meu primeiro trimestre de volta (primeiro trimestre de 1973), me matriculei para Introdução aos Estudos das Belas Artes, fazendo Introdução à Física no segundo. Já no segundo trimestre de 1974, consegui fazer duas disciplinas:  Pensamento Crítico (Lógica) e Introdução à Antropologia, disciplina essa que confirmou meu interesse pelas Ciências Sociais e, no particular, pela Antropologia.  De fato, tive um professor excelente – um ‘doutorando’ – que soube fazer uma abordagem bastante caprichosa dos quatro campos da antropologia: sociocultural, biológica, arqueologia e linguística. Tenho, até hoje, as copiosas notas feitas durante aquele meu primeiro encontro com a antropologia, acontecido há mais de quarenta anos...

Trabalhando na minha 'jurássica' Olivetti
1973




Durante esse período na SIUE, aproveitei também a possibilidade de ganhar créditos por meio de “exames de proficiência” (proficiency tests), pagando uma pequena taxa e me preparando, sozinha, para as provas.  Consegui, assim, aprovação (e os créditos correspondentes) em disciplinas de Espanhol e História Mundial.[8]  Juntando com os créditos que trouxe do Sedes Sapientiae, consegui acumular o equivalente a um pouco mais de um ano de estudos, bagagem essa que levei para a Illinois State University, em Normal, Illinois, onde finalmente concluiria meu bacharelado.
Mas deixei em Edwardsville amigas queridas, minhas colegas do banco, Connie Forck, Lavetta Bratton e Ann Schmidt, com as quais ainda me correspondo regularmente (viva a internet!!!). Temos nos reunido periodicamente, a última vez, em St.Louis, em 2010, com um novo encontro planejado, quiçá, para dezembro deste ano (2016). Essas amizades, carregarei em minha bagagem para sempre...


Colegas e amigas do Edwardsville National Bank
1972




Re-encontro com as Colegas em St.Louis - 2006









[3] Uso aqui a noção de ‘habitus’ tal qual proposta por Pierre Bourdieu (2007).
[4] Sobre o estudo de Goodenough em Truk, veja-se:  https://en.wikipedia.org/wiki/Ward_Goodenough
[5] Estudos têm proposto que essas “sales” proliferam não apenas por seu valor econômico, mas como espaços de sociabilidade, frequentados principalmente por mulheres, tanto como ‘vendedoras’, quanto como ‘compradoras’. Veja-se, por exemplo,  R. Landman (1987).
[7] Esse banco sobreviveu até 1988, quando foi anexado pela empresa Mark Twain, sendo renomeado como “Mark Twain Edwardsville Bank”. Veja-se: http://usbanks.landoffree.com/bank/Mark_Twain_Edwardsville_Bank
[8] Essas informações estão contidas no Histórico Escolar (transcript) da Southern Illinois University-Edwardsville, comprovante de No.05.

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