quarta-feira, 6 de abril de 2016

Capítulo I - 1.2 Formação Acadêmica Universitária e as Lutas para Concluí-la

1.2  Formação Acadêmica Universitária e as Lutas para Concluí-la

Neste subcapítulo, proponho-me a discorrer sobre minha trajetória acadêmica universitária – do curso de graduação aos estágios pós-doutorais – revelando como os marcos de gênero e classe produziram idas e vindas nesse percurso, de sorte a estendê-lo a mais de duas décadas. Contudo, apesar de fragmentado, tal percurso foi profundamente enriquecedor devido a mudanças radicais na minha ‘posicionalidade’ (SARDENBERG, 2015d) e, assim, nas minhas experiências de vida, inclusive em termos de trabalho, proporcionando-me importantes insights - como outsider within – em modos de vida bastante diferentes dos meus de origem.   
Por certo, como se verá adiante, meu percurso na graduação foi o mais fragmentado de todos, implicando em interrupções e mudança de cursos e universidades, em função, na sua maior parte, dos marcadores de gênero. Casei-me em dezembro de 1967 com um cidadão norte-americano, servindo na Força Aérea durante a Guerra do Vietnã.  Isso implicou minha mudança de São Paulo para Sumter, na Carolina do Sul e, posteriormente, de volta para o Brasil e, de novo, de volta a Illinois.

1.2.1 O semestre na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae (1967)

Quando, ao final do ginásio, optei por fazer o curso científico, tinha em mente estudar medicina, interesse esse que havia sido fomentando, originalmente, por meio de um namorado aluno da Escola Paulista de Medicina (hoje UNIFESP). Meu interesse foi ainda mais aguçado durante os jogos de basquete entre a ‘Pauli’ (pessoal da Paulista) e a ‘Poli’ (Escola Politécnica da USP), nos quais eu o acompanhava e ouvia a Bateria 51 cantando uma cantiga da Pauli que assim dizia: “Medicina, medicina, não é coisa prá menina.” Confesso ter me sentido ultrajada com essa cantiga e desafiada a ingressar em uma faculdade de medicina, chegando mesmo a me inscrever para o vestibular da USP (para entrar na famosa ‘Pinheiros’ de Medicina) e começar a fazer um cursinho para tal fim.
Todavia, no meu ano de intercâmbio nos Estados Unidos não cursei nenhuma disciplina na área de Biologia, Física ou Química, demandadas para o vestibular de medicina, pois as disciplinas então oferecidas nessas áreas, no St. Teresa, eram menos avançadas do que as cursadas por mim no Brasil. Sem esse reforço, me senti bastante despreparada para enfrentar o disputado vestibular, ou mesmo acompanhar as aulas do cursinho. O despreparo me levou ao desinteresse. Desisti de prestar o temido exame, quase em cima da hora.
Mas, é claro, eu queria continuar estudando! Por sugestão de uma amiga, pensava em cursar Ciências Sociais na USP, no entanto, quando fui fazer a inscrição para tentar o vestibular nessa área, já era muito tarde. Eu adorava (e ainda adoro!) literatura e, assim, acabei me inscrevendo, no último dia possível, para o vestibular de Letras (Português e Inglês) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, associada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).[1] Prestei o vestibular em fevereiro de 1967, mas me sentia incerta quanto ao resultado, pois não tivera o tempo desejado para me preparar. Foi, portanto, uma agradável surpresa quando procurei meu nome na lista de aprovados e constatei ter obtido a primeira colocação![2]
Cursei o primeiro semestre de Letras no Sedes, de março a final de junho de 1967, obtendo boas notas e mantendo sempre um bom convívio com as colegas e professoras. Contudo, não consegui me interessar muito pelo curso. Na verdade, o ponto alto do semestre aconteceu logo no início, na ocasião em que tive o prazer de ser a tradutora da palestra proferida no Sedes pelo Maharishi Mahesh Yogi,[3] criador da Meditação Transcendental,  quando de sua primeira visita ao Brasil, ocorrida poucos meses antes dele ficar famoso como o “Guru dos Beatles”.
No entanto, naquela época de efervescência de manifestações contra a ditadura, eu queria mais era participar das mobilizações estudantis que se avolumavam então por todo o Brasil, particularmente contra os acordos MEC-USAID. Acreditávamos que o objetivo maior desses acordos era a fragmentação dos nossos cursos, de sorte a dificultar a articulação e organização de estudantes. Lembro-me, em especial, de uma passeata de protesto em frente ao Consulado dos Estados Unidos, então operando no Conjunto Nacional, na Avenida Paulista, onde funcionavam, também, dois cinemas: o Rio e o Astor. Quando a polícia chegou para desbaratar nossa manifestação, corri com mais duas outras colegas para o Cine Astor onde estava passando o filme “Quem tem medo de Virginia Woolf?”.  Ficamos lá sentadas por duas sessões, mas só me recordo de ter assistido o filme, de fato, anos depois, tal era meu medo de ser pega pela polícia! 

Casamento em dezembro de 1967



Todavia, o pior foi voltar para casa e encontrar minha mãe desesperada, certa de eu ter sido presa – dois ou três casos dessa ordem já haviam acontecido na família. E depois, é claro, lidar com as restrições impostas em relação a minha participação em futuras manifestações. Confesso que ficou difícil. Some-se a isso a visita nas férias de julho de meu namorado americano, que fora convocado para servir nas forças armadas americanas e estava vivendo em uma base aérea na Carolina do Sul, podendo ser enviado a qualquer momento para uma ‘tour’ na Guerra do Vietnã!  Resultado: noivamos no final de julho antes de seu retorno à base e eu desisti do curso de Letras. Casei-me em dezembro de 1967, aos dezenove anos, ficando no aguardo da papelada da imigração para me mudar para os Estados Unidos, mas com a firme intenção de voltar a estudar.

1.2.2 O Mundo de Pernas para o ar: Visualizando o Racismo nas entranhas do monstro em Sumter, South Carolina

Só consegui viajar na segunda semana de abril de 1968, pouco depois da missa de sétimo dia do estudante secundarista, Edson Luís de Lima Souto, assassinado pela polícia da ditadura em 28 de abril no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, missa essa realizada na Igreja da Candelária no dia 4 de Abril.[4] Nesse mesmo dia, também o líder do movimento pelos Direitos Civis dos negros, nos Estados Unidos, o Reverendo Martin Luther King, Jr., era assassinado em Memphis, Tennessee, o que veio a provocar repetidas manifestações de protesto (riots) nos bairros negros das principais cidades do país.[5]
Eu cheguei à Atlanta, na Georgia, para fazer conexão em direção à Columbia, Carolina do Sul, em 8 de abril de 1968, na noite anterior ao sepultamento do Reverendo King, também em Atlanta.  O aeroporto fervilhava de gente, muitos chorando ou com o semblante entristecido, gente vinda de diferentes cidades americanas e de outros países para a cerimônia do dia seguinte.
Para me buscar no aeroporto, em Columbia, meu marido fora obrigado a obter uma autorização especial com seu comandante, haja vista a ordem de toque de recolher emitida pela polícia do Estado em consequência dos riots. E, de fato, por todo o trajeto de cerca de 90 km, do aeroporto em Columbia, até a Shaw Air Force Base (Shaw AFB), em Sumter, vimos fogo, manifestações, confrontos com a polícia. Fomos parados várias vezes pela polícia no trajeto, sendo obrigados a mostrar, a cada parada, a autorização do comandante para estarmos na estrada e chegarmos à Sumter.
Já era, pois, madrugada quando finalmente chegamos ao ‘parque de trailers’ (trailler park) que seria minha nova moradia pelos próximos seis meses. Assim, só na manhã seguinte, à luz do dia, pude me dar conta dos arredores. E foi um choque constatar que, aquilo antes imaginado como ‘romântico’ – morar em um trailer em uma base aérea –, se traduzira em morar em um caixote de metal, com cômodos interligados e bastante espremidos, estacionado em um lote com chão de terra batida, em frente à base aérea, mas do outro lado da estrada que levava à Sumter, ou seja, on the wrong side of the tracks.

O trailer no Shaw Trailer Court (1968)


Com efeito, apesar do nosso pequeno trailer azul ser rodeado por lindas roseiras e sombreado por uma frondosa árvore, logo descobri que morar em um ‘trailer’ era pertencer a uma das camadas menos prestigiadas da sociedade americana, um status social identificado como trailler trash. Na verdade, enquanto em Decatur eu havia sido a estudante do AFS e bastante ‘paparicada’ em minha escola – fui rainha das missões e uma das princesas na Homecoming Court – minha situação em Sumter, principalmente na Shaw AFB, era totalmente oposta. Ser estrangeira, brasileira, latino-americana não era ali algo a ser celebrado. Eu era apenas mais uma ‘esposa de soldado estrangeira’ e, acrescente-se, ‘não branca’, por ser ‘latina’, e morava agora em um trailler park. Em pouco mais de 24 horas, portanto, eu despencara vários degraus na pirâmide social. Uma experiência que, apesar dos pesares, contribuiu significativamente para a construção, em tempo, de uma epistemologia perspectivista, interseccionada, no meu pensar (SARDENBERG, 2002).
A Shaw AFB é uma das maiores bases aéreas nos Estados Unidos e incluía, na época, uma área residencial, mas, só para oficiais e pessoal de carreira (de ‘staff sargent’ para cima) e suas famílias. Na época em que vivi ali, os demais militares moravam na cidade (a 13,5 km da base) ou nos parques de trailers que circundam a base, como aquele em que fui residir. Ali viviam casais jovens, como nós, alguns com filhos pequenos, famílias de pessoal alistado sem patente.
Logo que cheguei, fiz amizade com algumas das jovens esposas que não trabalhavam fora de casa, mas não consegui me adaptar muito bem ao seu ritmo de vida: dar conta das tarefas domésticas pela manhã, para nos reunirmos no trailer de uma ou de outra e passar a tarde juntas, assistindo soap operas (novelas) na televisão. Acostumada a morar em São Paulo e a circular pela cidade com as colegas de faculdade, sentia-me tolhida morando em um lugar longe de tudo e sem transporte.  E sem transporte, porque, apesar de termos um carro, eu não podia dirigir vez que minha carteira de motorista do Brasil logo perdeu sua validade e não pude tirar uma carteira local, por força da ‘ordem patriarcal de gênero’: eu era mulher, com menos de 21 anos, e precisava da autorização do pai (que devia ser residente local) ou do marido (que também deveria ter mais de 21 anos) para poder me inscrever para um driver’s permit!
Para escapar das tardes em frente à televisão, ou lendo sozinha em casa, passei a frequentar a biblioteca da base. Foi assim que vim a conhecer ali Margaret Mead lendo Sexo e Temperamento, que me despertou para a antropologia, bem como Simone de Beauvoir, que me encantou com O Segundo Sexo e me levaria, em tempo, para o feminismo. Anos mais tarde, escrevi um artigo dedicado as duas sob o título, “Um diálogo possível entre Margaret Mead e Simone de Beauvoir”, no qual dou asas a imaginação criando uma ficção científica, ao utilizar trechos de suas obras para construir um diálogo entre as duas (SARDENBERG, 2000).
Mas, naquela época, ler Simone me fez ver que seria impossível, para mim, crescer como pessoa se continuasse na total dependência em que me encontrava.  Consegui, então, convencer meu marido que precisávamos nos mudar para a cidade, para eu poder trabalhar, ajudar nas despesas, quem sabe poder voltar a estudar na University of South Carolina.[6] 


 A casa na Dogwood Drive, em Sumter, South Carolina
1968




Foi assim que nos mudamos para uma casinha geminada na Dogwood Drive, em Sumter, e eu consegui trabalho como comerciária na Cato’s Department Store, uma loja de roupas femininas, na Westmark Plaza.[7] Foi meu primeiro emprego (em São Paulo eu dava aulas particulares de inglês) e, também, a primeira vez que sofri assédio moral. Eu trabalhava, normalmente, das 9 às 18hs, dependendo de transporte público para chegar ao trabalho. Pegava o ônibus das 8hs para chegar dentro do horário, chegando sempre meia hora antes de bater o ponto.  Um dia em que chovia muito, eu me atrasei em sair de casa e acabei perdendo o ônibus das 8; peguei o das 8:30, chegando para bater o ponto às 9:10hs, ou seja, dez minutos atrasada. Por azar, nesse dia a supervisora regional, cujo nome eu enterrei há muito tempo, estava lá. Nem bem fui chegando, ela começou a gritar comigo, não me dando a menor chance de explicar o atraso, tampouco permitindo que a gerente da loja pudesse retrucar dizendo que eu chegava meia hora antes todos os dias! Mas, minha raiva maior foi de mim mesma: por chorar incontrolavelmente e deixar que aquela mulher horrível me fizesse de gato e sapato. No mesmo dia, no meu horário de almoço, saí de lá e consegui emprego na Woolco’s Department Store (subsidiária da Woolworths),[8] que ficava no mesmo shopping center, pedindo minhas contas na Cato’s assim que voltei ao trabalho!
A Woolco’s era uma grande loja de departamentos e eu fui trabalhar no balcão de joias, na verdade, uma franquia de outra empresa funcionando dentro da Woolco’s. Além de ser responsável pelas vendas, eu tinha que aprender a tirar e colocar pulseiras de relógio e aumenta-las e diminuí-las de acordo com o braço do freguês ou freguesa e, o pior, era obrigada a limpar as pratas que ficavam sempre dispostas em um balcão ao lado. Resultado: até hoje tenho ódio de enfeites de prata! Mas trabalhar na Woolco’s foi uma importante aprendizagem. Nos horários de descanso (15 minutos de manhã e 15 à tarde) e de almoço, havia sempre outras funcionárias no employees’ lounge, onde as conversas sobre trabalho, família, filhos e televisão rolavam sem cessar. A maioria das pessoas que trabalhava ali era de fato composta por mulheres, algumas casadas com soldados da aeronáutica e de fora, como eu. Contudo, grande parte das demais era das classes trabalhadoras locais, filhas e esposas de operários ou de pequenos proprietários rurais, quase todas brancas e, diga-se de passagem, bastante preconceituosas, quando não abertamente racistas.

Jewelry Department - Woolco's Department Store
Sumter, SC, 1968


Conforme mencionado anteriormente, para chegar ao trabalho eu dependia de transporte público, pegando sempre os ônibus que rodavam pela Broad St. No ônibus, eu era geralmente a única não negra. Minhas companheiras de trajeto eram quase todas faxineiras, ou empregadas domésticas, em geral – tal qual retratado no filme “Histórias Cruzadas”, exibido em nossas telas em anos recentes.[9] O trajeto até a Westmark Plaza era longo, com tempo suficiente para conversas com companheiras de assento, o papo girando, na maioria das vezes, sobre minha (estranha para elas) presença no ônibus. Ao tomarem conhecimento de que eu era do Brasil, ficavam curiosas por saber se, de fato, as relações raciais eram diferentes na nossa suposta ‘democracia racial’, ainda que não se expressassem exatamente dessa forma. Isso foi me levando a refletir sobre a questão, abrindo meus olhos para, em tempo, reconhecer a força do racismo entranhado na sociedade brasileira. Anos mais tarde eu iria compreender também que, andando naquele ônibus, eu estava adentrando pelas “entranhas do monstro”, ao conhecer mais de perto a vida das mulheres negras norte-americanas vivendo no Sul dos Estados Unidos nos anos 1960.

Nenhum comentário:

Postar um comentário