1.2
Formação Acadêmica Universitária e as Lutas
para Concluí-la
Neste subcapítulo, proponho-me a discorrer
sobre minha trajetória acadêmica universitária – do curso de graduação aos
estágios pós-doutorais – revelando como os marcos de gênero e classe produziram
idas e vindas nesse percurso, de sorte a estendê-lo a mais de duas décadas.
Contudo, apesar de fragmentado, tal percurso foi profundamente enriquecedor
devido a mudanças radicais na minha ‘posicionalidade’ (SARDENBERG, 2015d) e,
assim, nas minhas experiências de vida, inclusive em termos de trabalho,
proporcionando-me importantes insights
- como outsider within – em modos de
vida bastante diferentes dos meus de origem.
Por certo, como se verá adiante, meu percurso
na graduação foi o mais fragmentado de todos, implicando em interrupções e
mudança de cursos e universidades, em função, na sua maior parte, dos
marcadores de gênero. Casei-me em dezembro de 1967 com um cidadão
norte-americano, servindo na Força Aérea durante a Guerra do Vietnã. Isso implicou minha mudança de São Paulo para
Sumter, na Carolina do Sul e, posteriormente, de volta para o Brasil e, de
novo, de volta a Illinois.
1.2.1
O semestre na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae (1967)
Quando, ao final do ginásio, optei por fazer
o curso científico, tinha em mente estudar medicina, interesse esse que havia
sido fomentando, originalmente, por meio de um namorado aluno da Escola
Paulista de Medicina (hoje UNIFESP). Meu interesse foi ainda mais aguçado
durante os jogos de basquete entre a ‘Pauli’ (pessoal da Paulista) e a ‘Poli’ (Escola
Politécnica da USP), nos quais eu o acompanhava e ouvia a Bateria 51 cantando
uma cantiga da Pauli que assim dizia: “Medicina, medicina, não é coisa prá
menina.” Confesso ter me sentido ultrajada com essa cantiga e desafiada a
ingressar em uma faculdade de medicina, chegando mesmo a me inscrever para o
vestibular da USP (para entrar na famosa ‘Pinheiros’ de Medicina) e começar a
fazer um cursinho para tal fim.
Todavia, no meu ano de intercâmbio nos
Estados Unidos não cursei nenhuma disciplina na área de Biologia, Física ou
Química, demandadas para o vestibular de medicina, pois as disciplinas então
oferecidas nessas áreas, no St. Teresa, eram menos avançadas do que as cursadas
por mim no Brasil. Sem esse reforço, me senti bastante despreparada para enfrentar
o disputado vestibular, ou mesmo acompanhar as aulas do cursinho. O despreparo
me levou ao desinteresse. Desisti de prestar o temido exame, quase em cima da
hora.
Mas, é claro, eu queria continuar estudando!
Por sugestão de uma amiga, pensava em cursar Ciências Sociais na USP, no
entanto, quando fui fazer a inscrição para tentar o vestibular nessa área, já
era muito tarde. Eu adorava (e ainda adoro!) literatura e, assim, acabei me
inscrevendo, no último dia possível, para o vestibular de Letras (Português e
Inglês) da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Sedes Sapientiae, associada à Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC/SP).[1]
Prestei o vestibular em fevereiro de 1967, mas me sentia incerta quanto ao
resultado, pois não tivera o tempo desejado para me preparar. Foi, portanto,
uma agradável surpresa quando procurei meu nome na lista de aprovados e
constatei ter obtido a primeira colocação![2]
Cursei o primeiro semestre de Letras no Sedes, de março a final de junho de
1967, obtendo boas notas e mantendo sempre um bom convívio com as colegas e
professoras. Contudo, não consegui me interessar muito pelo curso. Na verdade,
o ponto alto do semestre aconteceu logo no início, na ocasião em que tive o
prazer de ser a tradutora da palestra proferida no Sedes pelo Maharishi Mahesh Yogi,[3] criador da
Meditação Transcendental, quando
de sua primeira visita ao Brasil, ocorrida poucos meses antes dele
ficar famoso como o “Guru dos Beatles”.
No entanto, naquela época de efervescência de
manifestações contra a ditadura, eu queria mais era participar das mobilizações
estudantis que se avolumavam então por todo o Brasil, particularmente contra os
acordos MEC-USAID. Acreditávamos que o objetivo maior desses acordos era a
fragmentação dos nossos cursos, de sorte a dificultar a articulação e
organização de estudantes. Lembro-me, em especial, de uma passeata de protesto
em frente ao Consulado dos Estados Unidos, então operando no Conjunto Nacional,
na Avenida Paulista, onde funcionavam, também, dois cinemas: o Rio e o Astor.
Quando a polícia chegou para desbaratar nossa manifestação, corri com mais duas
outras colegas para o Cine Astor onde estava passando o filme “Quem tem medo de
Virginia Woolf?”. Ficamos lá sentadas
por duas sessões, mas só me recordo de ter assistido o filme, de fato, anos
depois, tal era meu medo de ser pega pela polícia!
Casamento em dezembro de 1967
Todavia, o pior foi voltar para casa e
encontrar minha mãe desesperada, certa de eu ter sido presa – dois ou três
casos dessa ordem já haviam acontecido na família. E depois, é claro, lidar com
as restrições impostas em relação a minha participação em futuras
manifestações. Confesso que ficou difícil. Some-se a isso a visita nas férias
de julho de meu namorado americano, que fora convocado para servir nas forças
armadas americanas e estava vivendo em uma base aérea na Carolina do Sul,
podendo ser enviado a qualquer momento para uma ‘tour’ na Guerra do
Vietnã! Resultado: noivamos no final de
julho antes de seu retorno à base e eu desisti do curso de Letras. Casei-me em
dezembro de 1967, aos dezenove anos, ficando no aguardo da papelada da
imigração para me mudar para os Estados Unidos, mas com a firme intenção de
voltar a estudar.
1.2.2
O Mundo de Pernas para o ar: Visualizando o Racismo nas entranhas do monstro em
Sumter, South Carolina
Só consegui viajar na segunda semana de abril
de 1968, pouco depois da missa de sétimo dia do estudante secundarista, Edson
Luís de Lima Souto, assassinado pela polícia da ditadura em 28 de abril no
Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, missa essa realizada na Igreja da
Candelária no dia 4 de Abril.[4]
Nesse mesmo dia, também o líder do movimento pelos Direitos Civis dos negros,
nos Estados Unidos, o Reverendo Martin Luther King, Jr., era assassinado em
Memphis, Tennessee, o que veio a provocar repetidas manifestações de protesto (riots) nos bairros negros das principais
cidades do país.[5]
Eu cheguei à Atlanta, na Georgia, para fazer
conexão em direção à Columbia, Carolina do Sul, em 8 de abril de 1968, na noite
anterior ao sepultamento do Reverendo King, também em Atlanta. O aeroporto fervilhava de gente, muitos
chorando ou com o semblante entristecido, gente vinda de diferentes cidades
americanas e de outros países para a cerimônia do dia seguinte.
Para me buscar no aeroporto, em Columbia, meu
marido fora obrigado a obter uma autorização especial com seu comandante, haja
vista a ordem de toque de recolher emitida pela polícia do Estado em
consequência dos riots. E, de fato,
por todo o trajeto de cerca de 90 km, do aeroporto em Columbia, até a Shaw Air
Force Base (Shaw AFB), em Sumter, vimos fogo, manifestações, confrontos com a
polícia. Fomos parados várias vezes pela polícia no trajeto, sendo obrigados a
mostrar, a cada parada, a autorização do comandante para estarmos na estrada e
chegarmos à Sumter.
Já era, pois, madrugada quando finalmente
chegamos ao ‘parque de trailers’ (trailler
park) que seria minha nova moradia pelos próximos seis meses. Assim, só na
manhã seguinte, à luz do dia, pude me dar conta dos arredores. E foi um choque
constatar que, aquilo antes imaginado como ‘romântico’ – morar em um trailer em
uma base aérea –, se traduzira em morar em um caixote de metal, com cômodos
interligados e bastante espremidos, estacionado em um lote com chão de terra
batida, em frente à base aérea, mas do outro lado da estrada que levava à
Sumter, ou seja, on the wrong side of the
tracks.
O trailer no Shaw Trailer Court (1968)
Com efeito, apesar do nosso pequeno trailer
azul ser rodeado por lindas roseiras e sombreado por uma frondosa árvore, logo
descobri que morar em um ‘trailer’ era pertencer a uma das camadas menos
prestigiadas da sociedade americana, um status social identificado como trailler trash. Na verdade, enquanto em
Decatur eu havia sido a estudante do AFS e bastante ‘paparicada’ em minha
escola – fui rainha das missões e uma das princesas na Homecoming Court – minha situação em Sumter, principalmente na Shaw
AFB, era totalmente oposta. Ser estrangeira, brasileira, latino-americana não
era ali algo a ser celebrado. Eu era apenas mais uma ‘esposa de soldado
estrangeira’ e, acrescente-se, ‘não branca’, por ser ‘latina’, e morava agora
em um trailler park. Em pouco mais de
24 horas, portanto, eu despencara vários degraus na pirâmide social. Uma
experiência que, apesar dos pesares, contribuiu significativamente para a
construção, em tempo, de uma epistemologia perspectivista, interseccionada, no
meu pensar (SARDENBERG, 2002).
A Shaw AFB é uma das maiores bases aéreas nos
Estados Unidos e incluía, na época, uma área residencial, mas, só para oficiais
e pessoal de carreira (de ‘staff sargent’ para cima) e suas famílias. Na época
em que vivi ali, os demais militares moravam na cidade (a 13,5 km da base) ou
nos parques de trailers que circundam a base, como aquele em que fui residir.
Ali viviam casais jovens, como nós, alguns com filhos pequenos, famílias de
pessoal alistado sem patente.
Logo que cheguei, fiz amizade com algumas das
jovens esposas que não trabalhavam fora de casa, mas não consegui me adaptar
muito bem ao seu ritmo de vida: dar conta das tarefas domésticas pela manhã,
para nos reunirmos no trailer de uma ou de outra e passar a tarde juntas,
assistindo soap operas (novelas) na
televisão. Acostumada a morar em São Paulo e a circular pela cidade com as colegas
de faculdade, sentia-me tolhida morando em um lugar longe de tudo e sem
transporte. E sem transporte, porque,
apesar de termos um carro, eu não podia dirigir vez que minha carteira de
motorista do Brasil logo perdeu sua validade e não pude tirar uma carteira
local, por força da ‘ordem patriarcal de gênero’: eu era mulher, com menos de
21 anos, e precisava da autorização do pai (que devia ser residente local) ou
do marido (que também deveria ter mais de 21 anos) para poder me inscrever para
um driver’s permit!
Para escapar das tardes em frente à
televisão, ou lendo sozinha em casa, passei a frequentar a biblioteca da base.
Foi assim que vim a conhecer ali Margaret Mead lendo Sexo e Temperamento, que me despertou para a antropologia, bem como
Simone de Beauvoir, que me encantou com O
Segundo Sexo e me levaria, em tempo, para o feminismo. Anos mais tarde,
escrevi um artigo dedicado as duas sob o título, “Um diálogo possível entre
Margaret Mead e Simone de Beauvoir”, no qual dou asas a imaginação criando uma
ficção científica, ao utilizar trechos de suas obras para construir um diálogo
entre as duas (SARDENBERG, 2000).
Mas, naquela época, ler Simone me fez ver que
seria impossível, para mim, crescer como pessoa se continuasse na total
dependência em que me encontrava.
Consegui, então, convencer meu marido que precisávamos nos mudar para a
cidade, para eu poder trabalhar, ajudar nas despesas, quem sabe poder voltar a
estudar na University of South Carolina.[6]
A casa na Dogwood Drive, em Sumter, South Carolina
1968
Foi assim que nos mudamos para uma casinha
geminada na Dogwood Drive, em Sumter, e eu consegui trabalho como comerciária
na Cato’s Department Store, uma loja de roupas femininas, na Westmark Plaza.[7]
Foi meu primeiro emprego (em São Paulo eu dava aulas particulares de inglês) e,
também, a primeira vez que sofri assédio moral. Eu trabalhava, normalmente, das
9 às 18hs, dependendo de transporte público para chegar ao trabalho. Pegava o
ônibus das 8hs para chegar dentro do horário, chegando sempre meia hora antes
de bater o ponto. Um dia em que chovia
muito, eu me atrasei em sair de casa e acabei perdendo o ônibus das 8; peguei o
das 8:30, chegando para bater o ponto às 9:10hs, ou seja, dez minutos atrasada.
Por azar, nesse dia a supervisora regional, cujo nome eu enterrei há muito
tempo, estava lá. Nem bem fui chegando, ela começou a gritar comigo, não me
dando a menor chance de explicar o atraso, tampouco permitindo que a gerente da
loja pudesse retrucar dizendo que eu chegava meia hora antes todos os dias!
Mas, minha raiva maior foi de mim mesma: por chorar incontrolavelmente e deixar
que aquela mulher horrível me fizesse de gato e sapato. No mesmo dia, no meu
horário de almoço, saí de lá e consegui emprego na Woolco’s Department Store
(subsidiária da Woolworths),[8]
que ficava no mesmo shopping center, pedindo minhas contas na Cato’s assim que
voltei ao trabalho!
A Woolco’s era uma grande loja de
departamentos e eu fui trabalhar no balcão de joias, na verdade, uma franquia
de outra empresa funcionando dentro da Woolco’s. Além de ser responsável pelas
vendas, eu tinha que aprender a tirar e colocar pulseiras de relógio e
aumenta-las e diminuí-las de acordo com o braço do freguês ou freguesa e, o
pior, era obrigada a limpar as pratas que ficavam sempre dispostas em um balcão
ao lado. Resultado: até hoje tenho ódio de enfeites de prata! Mas trabalhar na
Woolco’s foi uma importante aprendizagem. Nos horários de descanso (15 minutos
de manhã e 15 à tarde) e de almoço, havia sempre outras funcionárias no employees’ lounge, onde as conversas
sobre trabalho, família, filhos e televisão rolavam sem cessar. A maioria das
pessoas que trabalhava ali era de fato composta por mulheres, algumas casadas
com soldados da aeronáutica e de fora, como eu. Contudo, grande parte das
demais era das classes trabalhadoras locais, filhas e esposas de operários ou
de pequenos proprietários rurais, quase todas brancas e, diga-se de passagem,
bastante preconceituosas, quando não abertamente racistas.
Jewelry Department - Woolco's Department Store
Sumter, SC, 1968
Conforme mencionado anteriormente, para
chegar ao trabalho eu dependia de transporte público, pegando sempre os ônibus
que rodavam pela Broad St. No ônibus, eu era geralmente a única não negra. Minhas
companheiras de trajeto eram quase todas faxineiras, ou empregadas domésticas,
em geral – tal qual retratado no filme “Histórias Cruzadas”, exibido em nossas
telas em anos recentes.[9]
O trajeto até a Westmark Plaza era longo, com tempo suficiente para conversas
com companheiras de assento, o papo girando, na maioria das vezes, sobre minha
(estranha para elas) presença no ônibus. Ao tomarem conhecimento de que eu era
do Brasil, ficavam curiosas por saber se, de fato, as relações raciais eram
diferentes na nossa suposta ‘democracia racial’, ainda que não se expressassem
exatamente dessa forma. Isso foi me levando a refletir sobre a questão, abrindo
meus olhos para, em tempo, reconhecer a força do racismo entranhado na
sociedade brasileira. Anos mais tarde eu iria compreender também que, andando
naquele ônibus, eu estava adentrando pelas “entranhas do monstro”, ao conhecer
mais de perto a vida das mulheres negras norte-americanas vivendo no Sul dos
Estados Unidos nos anos 1960.
[2] Comprovante No. 04
[7] Fiquei surpresa
ao constatar que ainda existe uma cadeia de lojas Cato’s, inclusive uma em
Sumter, embora hoje em novo lugar: Cato Fashions - Jessamine Mall in
Sumter.
http://www.mystore411.com/store/view/10910120/Cato-Fashions-Sumter
[8] Já as lojas da
Woolco’s não sobreviveram, foram fechadas nos anos 1980. Veja-se: https://en.wikipedia.org/wiki/Woolco
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