quarta-feira, 6 de abril de 2016

Capítulo I - 1.1.2 O Colegial e a Experiência de Intercâmbio nos Estados Unidos

1.1.2 O Colegial e a Experiência de Intercâmbio nos Estados Unidos


Para a maior parte das jovens moçoilas do Des Oiseaux, contudo, o golpe não pareceu causar um grande impacto. Ao contrário, pertencentes, em sua maioria, a famílias das camadas abastadas, que apoiaram (ou mesmo mediaram) a abrupta mudança de governo, minhas colegas não questionaram o processo de destruição da democracia no país. E confesso que eu, muito embora não fizesse parte dessa minoria abastada – sentia-me, aliás, uma verdadeira ‘forasteira dentro’ naquela escola, uma outsider within -, tinha em    minha família muitos udenistas e militares que também apoiavam o golpe. Aos quinze anos, com pouca ou quase nenhuma sofisticação política, também eu não me dei conta da gravidade do que ocorria com o país, mesmo participando das atividades da JEC. Só algum tempo depois foi que comecei a tomar consciência dos horrores da ditadura...




Fachada do Colégio Des Oiseaux 


Mas, em meados dos anos sessenta, a exemplo do que ocorria no Sacré-Coeur e em outros colégios de freiras em São Paulo, também no Des Oiseaux se configurava uma mudança de ‘modelo’ para a formação das jovens, investindo-se na nossa formação para o ensino superior. De fato, o Des Oiseaux só oferecia os cursos científico e clássico para o segundo grau, ao tempo em que outros colégios de freiras, como o Sacré-Coeur,  ainda ofereciam Normal e Secretariado, cursos tradicionais para mulheres. Não por acaso, a despeito da perspectiva de Graziela Perosa (2006) sobre essa escola ‘para meninas’ ser uma formadora de ‘esposas’ para as elites, o Des Oiseaux produziu várias mulheres de renome, a exemplo das antropólogas Ruth Cardoso, Lia Zanotta Machado e Norma Telles, das sociólogas Maria Christina Bruschinni e Mariza Figueiredo, da teóloga Ivone Gebara, da psicóloga e ex-prefeita de São Paulo e ex-Ministra do Turismo e da Cultura, a senadora Martha Suplicy, da musicóloga, cantora, compositora e também ex-Ministra da Cultura, Ana Maria Buarque de Hollanda, das premiadas cientistas Beatriz Barbuy e Márcia Catharina Zanaga Trapé, da escritora Dinah Silveira de Queiroz, das poetas Betty Vidigal e Flora Figueiredo, dentre muitas outras. E, acrescente-se, quase todas elas feministas declaradas.
Vale lembrar que, no início dos anos sessenta, vivíamos um momento de ebulição da Bossa Nova com a produção de musicais de protesto, a exemplo de “Opinião” e “Arena Conta Zumbi”, de Festivais da Canção onde tanto  “A Banda”, quanto “Pra Não Dizer Que Falei de Flores”, conquistavam as plateias, sem esquecer dos Festivais de Cinema, com o nosso Cinema Novo ganhando espaço mundo afora.
 Não por acaso, no Des Oiseaux se enfatizava, então, a apreciação pelas artes. Eram promovidos shows de bossa-nova no auditório do colégio - nos quais se apresentava Chico Buarque de Hollanda com suas irmãs, Ana e Cristina, nossas colegas -; a semana do ‘cinema novo’, quando foi mostrado o filme vencedor da Palma de Ouro, ‘O Pagador de Promessa’, seguido de um debate com Geraldo Del Rey, ator principal;  recitais de poesia, além de cursos de teatro com os atores Rodrigo Santiago, Paulo Villaça e Odavlas Peti.
Eu fiz o curso com Paulo Villaça[1] no primeiro semestre de 1965, participando da apresentação final como integrante do jogral e representando a personagem ‘Maricota’, um papel cômico, em “O Judas em Sábado de Aleluia”, uma comédia de costumes de Martins Pena.[2] Lembro-me que consegui provocar muitos risos na plateia, sendo bastante aplaudida e recebendo elogios de meu professor, Paulo Villaça. Ele até sugeriu que eu continuasse a fazer teatro. E eu pensei, seriamente, em seguir seus conselhos, mas, logo no início das férias de julho daquele ano (1965), tive notícia de que havia sido agraciada com uma Bolsa de Estudos do American Field Service International Scholarships – AFS,[3] para fazer um ano de intercâmbio na St. Teresa High School,[4] em Decatur, Illinois, nos Estados Unidos da América do Norte.

Notícia da minha ida no Decatur Herald
(1965)




Turma do Brasil no ônibus da Greyhound (eu estou de pé, a mais baixinha)

Foi assim que, em 27 de julho de 1965, com apenas dezessete anos, me vi embarcando em um grande avião da extinta Panam, com mais de duzentos outros jovens brasileiros e argentinos a bordo, seguindo do Rio de Janeiro para Nova Iorque.  Foi uma viagem bastante longa, pois, na época, ainda era necessário fazer escala para reabastecimento da aeronave em San Juan, Porto Rico. Depois de duas noites em Nova Iorque, veio mais outra longa viagem, desta feita, de cerca de quase dois dias em um ônibus da Greyhound de Nova Iorque a St. Louis, no Estado de Missouri, onde a Família Shiel, que seria minha ‘família americana’ naquele ano, me aguardava. Eu cheguei ao meu destino, mas, mais da metade do pessoal continuou seguindo viagem no ônibus para a Califórnia! Ufa!



Família John J. Shiel, minha família americana
(1965)




Essa experiência de intercâmbio foi, de fato, um importante marco em minha vida. E não apenas pelos lugares e pessoas que conheci, as amizades que construí e pela oportunidade de aperfeiçoar meu domínio da língua inglesa (abrindo-me muitas portas desde então), mas, sobretudo pela experiência de imersão total em um novo modo de vida (cultura?). Creio mesmo que essa experiência – aliás, mais uma em que me senti uma outsider within -  em muito se assemelhou à experiência do ‘rito de passagem’ antropológico, o trabalho de campo com imersão total e observação participante, nos moldes delineados por B. Malinowski (1925/1984), no capítulo inicial dos Argonautas do Pacífico Ocidental. Mesmo que a cultura norte-americana não fosse tão distante, ou tão ‘exótica’ em relação a nossa e, mesmo que ganhar desenvoltura na língua inglesa fosse certamente bem mais fácil do que na tobriandesa, aprender a viver como adolescente norte-americana do ‘Midwest’ não foi tarefa fácil. Demandava um constante exercício de “observação participante”, mas sem o devido treino para tanto, o que dificultava ainda mais nosso entrosamento na vida americana.


Fachada da St.Teresa High School em 1966




Confesso que não foram poucos os momentos vividos no estilo  anthropological blues, de que nos fala Roberto da Matta (1978). Lembro-me, em especial, de uma slumber party (festa de pijamas) para a qual fui convidada, logo no meu primeiro mês na cidade de Decatur, com a presença de cerca de vinte jovens, minhas colegas de turma na St. Teresa naquele ano. Fiquei tão atordoada com tanta menina falando inglês com gíria adolescente e me fazendo mil e uma perguntas ao mesmo tempo, que acabei fingindo estar com sono e me aconchegando em um cantinho da sala para poder descansar minha cabeça e fugir dali, pelo menos em pensamento. Concentrei-me, então, na música tocando ao fundo: e foi ali, naquela noite, o início da minha paixão pelos Beatles, paixão essa que perdura até hoje e, que, em anos recentes, me levou a Liverpool, com meu filho, para fazer uma ‘tour dos Beatles’ oficial!
Meu ano nos Estados Unidos como bolsista do AFS me colocou em contato, não apenas com a vida norte-americana, mas também de vários outros países, por intermédio de outras/os jovens, como eu, também bolsistas, tanto do AFS como de outros programas de intercâmbio. Só em Decatur e cidades circunvizinhas, por exemplo, éramos mais de vinte bolsistas, nos encontrando periodicamente em festas, reuniões e outras atividades específicas. Tornei-me especialmente próxima de Terry Yeoh, da Malásia, Madeleine Briqueu, da França, Maria Cristina Gerosi, da Argentina e de Anita Tanthana, da Tailândia, tendo a felicidade de reencontrar algumas delas muitos anos depois por meio do Facebook.






Nossas atividades como bolsistas do AFS incluíam a concessão de uma série de entrevistas e de palestras para clubes, igrejas e outras escolas, muitas vezes com um público considerável.[5] Nessas ocasiões, eu era instada a falar sobre minha vida no Brasil e a fazer comparações com os Estados Unidos. Isso me obrigava a traduzir de uma cultura para a outra, fazendo, por assim dizer, do “estranho familiar e do familiar exótico”, aprendendo, assim, na prática, os primeiros passos de um “fazer antropológico”. Mas, é claro, na época, eu não tinha a menor consciência de estar exercitando algo semelhante a esse fazer. Tampouco soube reconhecer como choque cultural o sentimento de me sentir perdida, tanto nas primeiras semanas da minha chegada aos Estados Unidos, quanto do meu retorno a São Paulo um ano depois, pois a vida em terras brasileiras não parou, não ficou suspensa no ar esperando meu retorno. Havia aí, contudo, uma importante diferença: enquanto na St.Teresa High School eu participara de todas as atividades como uma outsider within, essa sensação, embora presente logo que retornei ao Brasil, foi se dissipando aos poucos, na medida em que o sentimento de pertença se alojava novamente em mim.



Com minha colega, Diane Sheehy, na Homecoming Parade - 1965



Ao final do meu ano na St. Teresa, recebi meu diploma de High School.[6] Contudo, para torna-lo válido no Brasil, precisei me submeter a exames de revalidação específicos no Colégio Pedro II, tornando desnecessário voltar a cursar o científico com minhas colegas no Des Oiseaux.[7] Ganhei, assim, um semestre no qual me dediquei a dar aulas de inglês – minha primeira atividade lucrativa – e a trabalhar como voluntária para o Comitê do AFS de São Paulo, entrevistando famílias para receberem intercambistas dos Estados Unidos.

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