I ATIVIDADES DE FORMAÇÃO
Neste primeiro capítulo, dedicado às minhas
atividades de formação, faço uma viagem no tempo e espaço – geográfico e
sociocultural – percorrendo os caminhos traçados desde o ensino fundamental,
realizado em São Paulo, até os estágios pós-doutorais no Institute of Development Studies-IDS, na Inglaterra. Tomo a
liberdade de iniciar com o meu ‘início’, discorrendo sobre minhas origens
familiares e formação pré-universitária, de sorte a melhor contextualizar minha
situação social em termos de origem de classe e como tal situação irá se
transformar com minhas mudanças de país ao longo do tempo.
Creio ser importante também fazer essa volta
no tempo, já que sou parte da geração dos chamados ‘anos rebeldes’, a geração
que viveu toda sua juventude sob os difíceis anos da ditadura militar no país.
Como se verá adiante, mesmo que não tenha sofrido diretamente na pele os
efeitos mais danosos desse regime, trago a sua marca na minha trajetória de
vida, por ter sido levada a ir viver no exterior. Espero tornar-se evidente
aqui, também, que as desigualdades de gênero sofridas por eu ser mulher vivendo
em sociedades patriarcais foram amenizadas em parte pelos privilégios de classe
dos quais usufruí no Brasil. No exterior, sofri um ‘downgrade’ em relação à
classe, mas o fato de ter pele clara em um mundo racista, mesmo sendo vista
como ‘latina’, ou seja, não branca, operou como marcador no sentido de me
tornar ‘menos’ vulnerável ao racismo. Tudo isso demarcou minhas experiências de
vida e formação nos diferentes contextos em que fui construindo minha
identidade e minha consciência de ser e estar no mundo.
Dar essa volta maior ao delinear os caminhos
traçados nas minhas atividades de formação será também uma forma de preencher
as muitas lacunas dessa trajetória, tão evidentes para quem apenas se debruça
sobre meu ‘currículo Lattes’. É um grande prazer poder, finalmente, situar
minha trajetória acadêmica dentro desse contexto muito mais amplo que é minha
história de vida!
1.1
Origens e Formação Pré-Universitária
Minha história se inicia na Pró-matre
Paulista, na cidade de São Paulo, precisamente às 06 horas da manhã do dia 12
de junho de 1948, quando, adiantando-me quase dois meses no termo normal de uma
gravidez, nasci. Naquela manhã fria de junho, o jornal Folha da Manhã anunciava haver cessado “a luta em todas as frentes
da Palestina” (com várias acusações de violação de trégua) e ressaltava a
“importância de um acordo final com a União Soviética”, tanto da parte da
França e Inglaterra, quanto dos Estados Unidos.[1]
No Brasil, porém, vivia-se um intervalo
democrático sob o governo do Presidente Eurico Gaspar Dutra, eleito em 1946
para suceder Getúlio Vargas, depois de mais de uma década de ditadura. Mesmo assim, o processo democrático ainda
engatinhava por aqui, vez que nosso direito à cidadania mostrava-se ainda
bastante frágil, sobretudo para nós, mulheres: já havíamos conquistado o
direito ao voto e à educação superior, mas ainda nos educavam “para o lar”,
para a maternidade, para a domesticidade. Não tínhamos direito a crédito, não
podíamos trabalhar sem autorização do pai ou do marido, não tínhamos meios
contraceptivos seguros, tampouco o direito à interrupção voluntária da gravidez.
Caberia a minha geração de mulheres conquistar novos espaços de atuação, uma
conquista ainda não de todo consolidada e para a qual venho militando há mais
de quatro décadas.
Com minha mãe e minha irmã no meu batizado
1948
À bem da verdade, como filha de uma família
das chamadas ‘camadas médias urbanas’, enfrentei menos dragões do que outras
mulheres de minha geração para abrir esses caminhos. Meu pai, Izalco Sardenberg Junior, era
funcionário do Banco do Brasil, e minha mãe, Maria Candida Bacellar Sardenberg,
então ‘dona de casa’, ambos filhos de funcionários do Banco do Brasil – um
gerente (Ruy Dantas Bacellar, meu avô materno) e outro subgerente (Izalco
Sardenberg, meu avô paterno), da agência centro do Banco em São Paulo. Contudo,
de ambos os lados, as famílias tinham origens bem mais humildes.
Do lado paterno, meus antepassados eram
imigrantes que vieram do condado de Valais, Suíça, chegando ao Brasil em 1819,
no navio Heureux Voyage. Eles integraram a primeira leva de colonos suíços
trazidos para cá a convite de D. João VI, fundando, em tempo, as cidades de
Macaé e Nova Friburgo no Estado do Rio de Janeiro e Casimiro de Abreu, no
Espírito Santo.
Bodas de Ouro de meus avós paternos,
Izalco Sardenberg e Leomenia Pereira Sardenberg
janeiro, 1970
Jean-Laurent Sottenberg (traduzido para
‘Sardenberg’ no Brasil), bisavô de meu avô Izalco, era um dos poucos letrados
dentre esses imigrantes. Pouco afeito ao trabalho na roça, conseguiu colocação
na Biblioteca de D. Pedro I no Rio de Janeiro, levando para lá sua esposa,
Marie Françoise Cretton, de apenas dezesseis anos, que dera a luz a um filho na
mesma época em que nascera D. Pedro II.
Não se sabe como, nem por que, Marie Françoise, bisavó de meu avô, foi
escolhida para ser a nutriz de D. Pedro II. Foi assim que seu filho veio a
chamar-se Pedro D´Alcântara Sardenberg, sendo agraciado com uma Bolsa do
Império para cursar direito em São Paulo e, posteriormente, ser nomeado
Secretário da Educação de Mato Grosso.[2]
Seu neto mais velho, Olyntho, meu bisavô, fez carreira militar, morrendo cedo
na vida de complicações cardiovasculares. Como filho mais velho, meu avô Izalco
viu-se obrigado a ir trabalhar para ajudar a mãe a criar os irmãos, conseguindo
colocação no Banco do Brasil, mas direcionando todos seus irmãos homens para
carreiras militares.[3]
Do lado da família de minha mãe, também
algumas carreiras militares e de bancários se destacaram. Consta que dois irmãos
Bacellar migraram de Portugal no século XIX e aportaram na Bahia; um foi para o
Maranhão, enquanto o outro se estabeleceu em terras baianas, na região de Entre
Rios e Inhambupe. Um de seus netos, meu
bisavô Elizeu Dantas Bacellar, alistou-se no Exército e foi para o sul lutar na
Guerra do Paraguai, levando consigo um violão e uma espada de prata que, até
hoje, circulam pela família.[4]
Por seu desempenho na guerra, foi agraciado com o mérito de Cavaleiro da
Imperial Ordem da Rosa – medalha que por muito tempo decorou uma caixinha
dourada na mesinha de sala da casa de meus avós.[5]
Depois de dar baixa no Exército, meu bisavô
Elizeu tornou-se “Solicitador da República” (uma espécie de advogado – ou
rábula), casando-se no Rio de Janeiro com Maria Candida da Rocha Bacellar. Ela
era descendente de negros, mas fora criada como filha por família de classe
média, sendo treinada como professora de línguas. Em uma época em que poucas
mulheres sabiam ler e escrever, principalmente as mulheres negras, minha bisavó
Maria Candida fundou e dirigiu uma escola em Limeira, no interior do Estado de
São Paulo. Com a morte de meu bisavô, ela foi obrigada a fechar a escola, vez
que, à época, era vedado às mulheres serem oficialmente donas de escola. Ela
morreu poucos anos depois, deixando órfão meu avô Ruy, caçula da família, ainda
adolescente (14 anos). Ele passou a viver um pouco aqui, um pouco ali, com cada
um de seus irmãos mais velhos. Estudou engenharia na Escola Politécnica de São
Paulo, mas, por falta de recursos para continuar os estudos, acabou optando,
como meu outro avô, Izalco, por também trabalhar no Banco do Brasil.[1]
Minha mãe (a bebezinha) com seus pais e avós do lado materno,
bisavô Francisco Gonçalves Neto e bisavó Cândida Augusta Ribeiro Gonçalves
Minha mãe, Maria Candida Dantas Bacellar
Minha mãe chegou a lecionar por algum tempo, mas, à época do meu nascimento, como bem cabia então às jovens senhoras das camadas médias, já se dedicava apenas às ‘prendas do lar’. À bem da verdade, minha família vivia então de forma modesta, dependendo apenas do ordenado do meu pai como bancário, residindo primeiro em um pequeno apartamento na Rua Dona Hipólita, no Jardim Paulistano e, depois, em uma casa de vila na Rua dos Pinheiros: meus pais, Sonia Maria, minha irmã mais velha, hoje funcionária aposentada do Banco do Brasil, e eu. Meu irmão caçula, Walterson - carinhosamente chamado de ‘Pitico’ ou apenas ‘Piti’ pela família e hoje um conceituado jornalista, conhecido por todos como ‘Berg’- só viria ao mundo nove anos mais tarde. Já residíamos, então, em uma casa maior na Alameda Ministro Rocha Azevedo, presente do meu avô ao filho.
Com meu Piti, o "Berg"
[2] Consta também
que Jean Laurent recebeu do Imperador 400 hectares de terras num local chamado
Casimiro de Abreu, que permanece nas mãos da Família Sardenberg (CARRON:
CARRON, 1986). Veja-se, também, NICOULIN
(1995); BON (1994); SANGLARD (2003).
[3] De acordo com o
relato de Fernando Pinheiro em seu blog, meu avô paterno, Izalco Sardenberg,
foi empossado no Banco do Brasil em 1918, aposentando-se em 1948 (ano em que
nasci), quando era Contador da Agência de São Paulo, capital, época em que meu
avô materno, Ruy Dantas Bacellar, era o Gerente. Veja-se: http://fernandopinheiroescritor.blogspot.com.br/2013/01/spaulo-galante-vii.html
[6] Sobre a carreira
de Ruy Dantas Bacellar no Banco do Brasil, veja-se: http://fernandopinheiroescritor.blogspot.com.br/2013/01/spaulo-galante-v.html
[7] Sobre o
‘Sobradão do Porto’, onde cresceu minha avó materna, veja-se: http://fundart.com.br/dt_portfolio/sobradao-do-porto/
[8] O único ramo
“paulista quatrocentão” da família parece ter vindo do lado materno, da avó
materna de minha mãe, minha bisavó Cândida Augusta (Martins Ferreira) Ribeiro
Gonçalves, cuja família tinha longas raízes em Bragança. A genealogia desse
ramo da família consta em um livreto publicado em 1945, pela Indústria Gráfica
Siqueira, de São Paulo, sob o título Os
Martins Ferreira e os Ribeiro de Bragança, no qual não consta a autoria.
Meus pais e minha irmã são citados na página 54; mas nem eu, nem meu irmão
éramos nascidos na época de publicação dessa genealogia.
[1] Sobre a carreira de Ruy Dantas Bacellar no Banco do Brasil, veja-se: http://fernandopinheiroescritor.blogspot.com.br/2013/01/spaulo-galante-v.html
[2] Sobre o ‘Sobradão do Porto’, onde cresceu minha avó materna, veja-se: http://fundart.com.br/dt_portfolio/sobradao-do-porto/
[3] O único ramo “paulista quatrocentão” da família parece ter vindo do lado materno, da avó materna de minha mãe, minha bisavó Cândida Augusta (Martins Ferreira) Ribeiro Gonçalves, cuja família tinha longas raízes em Bragança. A genealogia desse ramo da família consta em um livreto publicado em 1945, pela Indústria Gráfica Siqueira, de São Paulo, sob o título Os Martins Ferreira e os Ribeiro de Bragança, no qual não consta a autoria. Meus pais e minha irmã são citados na página 54; mas nem eu, nem meu irmão éramos nascidos na época de publicação dessa genealogia.
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