quarta-feira, 13 de abril de 2016

Capítulo I - 1.3.2 Boston University - 1984-1986

1.3.2 Boston University – 1984-1986

Discuto minha atuação na UFBA em maiores detalhes no próximo capítulo. Aqui, cabe apenas ressaltar que o contrato demoraria a chegar. Nesse interim, comecei a dar aulas de Antropologia Social na Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Salvador.[1] Trabalhei também em dois projetos vinculados à ISP-UFBA: como documentadora no Curso de Serralheria para Mulheres, do CESUN, financiado pelo Pathfinder Fund[2] e, depois, em um Projeto sobre reflorestamento, desenvolvido pela COPENER, com uma bolsa de assistente de pesquisa do CNPq.[3]
Como documentadora do Pathfinder Fund por cerca de 24 meses, entre 1982 e 1984, acumulei grande quantidade de material de campo sobre relações de gênero, família e trabalho entre as camadas populares de Salvador e, com a autorização do Pathfinder para uso desse material de campo para minha tese, solicitei e fui agraciada com um bolsa da CAPES para retornar a Boston. A essa época, já estava separada do pai dos meus filhos, que se recusou a conceder a autorização necessária para eles viajarem comigo para o exterior. Enfrentei, assim, uma longa batalha de mais de seis meses, tentando conseguir autorização da Justiça da Bahia para levar meus filhos comigo. Nesse período, meu ex-companheiro não só pediu o cancelamento da minha bolsa junto a CAPES, como também me acusou de tentativa de sequestro dos meus filhos, me tornando personagem das páginas policiais dos jornais da cidade.[4]
Nem tudo, porém, foi desesperador: conforme esclareci em artigo recente sobre a questão da posicionalidade da/o pesquisador/a em trabalho de campo antropológico (SARDENBERG, 2014b),[5] essa situação revelou minha vulnerabilidade de gênero, trazendo uma importante mudança na minha relação com as mulheres do projeto em que trabalhava, ou seja, permitiu uma maior aproximação com minhas interlocutoras.
Mas não foram poucos os problemas enfrentados para voltar a Boston com dois filhos pequenos (de 3 e 5 anos) e tentar trabalhar na tese. Por certo, tive o apoio da minha família de origem e de amigos e amigas em Salvador e em Boston, bem como do empenho de meu orientador, Tony Leeds. Mas,  concluir meu trabalho, dentro do pequeno espaço de tempo que me fora concedido pela Justiça da Bahia, para eu permanecer com meus filhos no exterior, não foi tarefa fácil. Ao contrário, foram muitas as dificuldades, principalmente as financeiras. A bolsa da CAPES não cobria as despesas de estadia, muito menos as de creche das crianças. Vivenciei, assim, os problemas que mães de filhos pequenos, mães trabalhadoras enfrentam quando não dispõem dos recursos necessários para cobrir custos com creches ou cuidadoras para as crianças. E constatei como minha situação era bastante distinta da dos homens, meus colegas do Brasil, que também tinham filhos pequenos. Eles contavam com suas companheiras para cuidar dos filhos, recebendo apoio extra da CAPES para elas (as companheiras)!


Marina e João com meus sobrinhos, Rodrigo e Ricardo,
assistindo à Boston Marathon na esquina de casa, 1986


Não posso esquecer, porém, que muitas pessoas me apoiaram e assistiram nesse período. Agradeci a elas, uma por uma em minha tese, mas destaco aqui Tony Leeds, meu orientador, pelo apoio amigo, em todos os momentos; meus sobrinhos, Ricardo Afonso Sardenberg e Rodrigo Afonso Sardenberg, por ficarem conosco em Boston, estudando e me dando força com as crianças; Graciete e Carlos Gentil Marques e suas filhas, vizinhos de porta e amigos para sempre, pelo apoio cotidiano indispensável; José Sérgio Gabrielli e a saudosa Eliza Rocha, sempre presentes para o que fosse preciso; M.Estellie Smith e Charles Bishop, por confiarem a casa deles em Oswego, New York, em minhas mãos durante o verão de 1986 e; Libbett Crandon e seus pais, por abrigarem a mim e a meus filhos em sua casa em Chestnut Hill, enquanto aguardávamos nossas passagens de volta ao Brasil. E, é claro, minha família que do Brasil me mandava todo tipo de apoio material e emocional.




Marina e João em Oswego, New York, 
nos fundos da casa de M.Estellie Smith e Charles Bishop
1986

Apesar de todo esse apoio, fato é que não consegui concluir a tese antes do prazo estabelecido pela Justiça da Bahia. E, pouco depois do meu retorno ao Brasil, Tony Leeds faleceu repentinamente. Fiquei perdida! Ademais, num curto espaço de tempo depois disso, perdi também minha avó, minha mãe e meu pai. E meu trabalho de tese ficou parado, por anos...
Nesse período, vivenciava-se no Brasil o processo de redemocratização, os movimentos pelas ‘Diretas Já’ e a campanha por uma Constituição  mais progressista, a partir de emendas populares. O Grupo Brasil Mulher, do qual eu fazia parte, bem como o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM, órgão da Universidade Federal da Bahia, criado em 1983 e no qual, conforme já mencionado, venho trabalhando desde então, viram-se largamente envolvidos nessas campanhas. Em especial, nos voltamos para a coleta de assinaturas para as emendas populares pertinentes às questões de gênero e direitos das mulheres, envolvendo-nos, também, na elaboração da proposta do Capítulo da Mulher, da Constituição do Estado da Bahia, e em emendas populares para a Lei Orgânica do Município de Salvador.
Era um momento importantíssimo para o país – mas de otimismo, de crença em um futuro cada vez mais democrático e de avanço dos nossos direitos e também dos estudos feministas nas universidades. O NEIM investiu muito nisso. Começamos nos envolver com a articulação de redes de pesquisadoras feministas (a exemplo da REDOR e REDEFEM sobre as quais falarei mais adiante) e na promoção de cursos, dentre outras atividades, tudo isso me ocupando cada vez mais e deixando cada vez menos tempo e espaço para a conclusão da tese. Confesso mesmo que, com a efervescência dos desdobramentos das atividades que desenvolvíamos, acabei deixando a tese de lado, embora ainda interessada pela temática proposta, ou seja, gênero, família e trabalho.
   
1.3.3 Boston University 1995-1996
            Os anos 1990 chegaram trazendo a exigência da titulação de doutorado para avanços na carreira acadêmica e como pesquisadoras. Também se impunha como essencial no que se referia à legitimidade e reconhecimento do feminismo acadêmico em nosso meio (SARDENBERG, 2015d).[6]  Para dar continuidade às atividades de ensino, pesquisa e extensão, nós, integrantes do NEIM/UFBA, sentimos a necessidade de buscar essa titulação.  Ana Alice Costa e eu entendemos que era hora de voltarmos e retomarmos nossos estudos – ela na UNAM, no México, eu na BU, nos Estados Unidos – e começamos a preparar o terreno para a volta.
  Nessa época, estávamos trabalhando com o Centro da Mulher Suburbana- CEMS (hoje Centro da Mulher Baiana) e, principalmente, com a Associação de Moradores de Plataforma – AMPLA. Parte do meu trabalho com a AMPLA envolvia a facilitação de oficinas com o Grupo de Mulheres Idosas, de Plataforma, vindo delas a informação sobre a Fábrica São Braz, que ali funcionou por mais de oitenta anos. Muitas das mulheres participantes do grupo eram antigas operárias dessa fábrica e me incentivaram a desenvolver o estudo sobre a história da São Braz e de seu operariado, estudo esse que serviu de base para o desenvolvimento da minha tese doutoral. Mas minha ideia era dar continuidade aos estudos sobre gênero, classe, trabalho e família entre as camadas das classes trabalhadoras que eu havia iniciado com meu trabalho como documentadora no Projeto do Pathfinder, olhando então para mulheres operárias.
            Para elaborar e defender a tese, apresentei o novo projeto ao Departamento de Antropologia da Boston University, com cartas de apoio de Heleieth Saffiotti, nossa querida amiga que também se foi, Rebecca Reischmann, da Fundação Ford, que havia nos acompanhado na articulação da REDOR e da REDEFEM, Jane Guyer, que fora minha professora anteriormente na BU, bem como Dolores Shapiro, amiga de longa data que à época estava como professora em New Jersey. Como apoio de peso, o Departamento de Antropologia me readmitiu, indicando a Profa. Dra. Sutti Ortiz, especialista em antropologia econômica e em América Latina, como minha orientadora.
Com a aprovação do pleno do Departamento de Antropologia da UFBA, onde eu estava lotada desde 1982, candidatei-me e obtive, então, junto a CAPES, uma nova bolsa de doutorado no exterior para concluir minha tese, permanecendo nos Estados Unidos de dezembro de 1994 a setembro de 1996.[7]
Desta feita, meus filhos já eram adolescentes (14 e 16 anos) e pressionaram o pai para que ele lhes concedesse autorização de saída do país comigo, sem maiores problemas. E já eram suficientemente crescidos – até mesmo, bastante independentes – de sorte que pude me dedicar à elaboração da tese.


Com Marina e João em frente ao Gloucester Monument
1995


Tendo em vista que essa tarefa não implicaria em visitas constantes à Boston University, meus filhos e eu fomos morar na cidade costeira de Gloucester, no Cape Ann, em Massachusetts, a cerca de 40 minutos de Boston. Cidade pesqueira de renome, Gloucester atraiu uma população imigrantes de italianos e portugueses, originalmente envolvidos na pesca. E, talvez mesmo por concentrar uma significativa população de origem portuguesa, a cidadezinha passou a atrair, também, na época em que lá moramos, um crescente número de imigrantes brasileiros, principalmente mulheres, algumas das quais se tornaram nossas amigas. Dentre elas, destaco, em especial, Rosângela Souza e Luciane Musso Maia e, através delas, Jane Winsor, todas as três amigas queridas sem as quais teria sido difícil – talvez até mesmo impossível - enfrentar o rigoroso inverno da região e, novamente, a situação de ‘outsider within’ que se vivencia como residente no exterior.
Para mim e meus filhos foi um período difícil, porquanto o custo de vida nos Estados Unidos estava acima do que a bolsa e o salário cobriam. Mas foi um bom aprendizado e um momento importante de ficarmos próximos. Marina, então com 16 anos, ia trabalhar na lanchonete ‘Dunkin Donuts’ como garçonete depois que voltava da escola, juntando dinheiro para comprar um som potente que trouxe consigo para o Brasil. João, com apenas 14 anos e, assim abaixo da idade para conseguir emprego nos Estados Unidos, trabalhou como voluntário no ‘summer camp’ do YMCA local, assistindo também nossa amiga, Rosângela, nas aulas de dança latina que ela oferecia em Gloucester. Ele rompeu com a timidez de quem ainda não dominava totalmente o idioma local, se candidatando e sendo escolhido para atuar em uma peça de teatro da escola, a Gloucester High School.


Meu canto de trabalho da tese em New Hampshire
1996

E eu me dediquei totalmente à tese, passando boa parte da escrita tentando descobrir qual era, de fato, a minha tese! Intitulada “On The Backyards of the Factory: Gender, Class, Power and Community in Bahia, Brazil” (SARDENBERG, 1997),[8] a tese versou sobre o antigo operariado baiano, tal qual expresso no ‘abstract’, que reproduzo a seguir:

“This dissertation reconstructs and analyzes work relations and everyday life of men and women textile workers in a working-class neighborhood, owned by the mill,  in the outskirts of the city of Salvador in Bahia. It also traces the transformation of the neighborhood and of the textile mill from 1875 to 1960.  It relies on the combined results of six-years of intermittent field research in the community and in-depth interviews and life histories of twenty men and women who had worked in the factory. It is also based on the analysis of data from payroll books and other company records for a sample of 385 employees.      The study takes a gender perspective and shows that women’s experience of factory work was unlike that of men. Men and women had distinct domains of influence and faced different struggles. Although the factory relied largely on the employment of the women from the community, patriarchal gender relations dominated in the workplace. Not only was the chain of command in male hands, but it was also men who led and took an active role in the local unions and in collective actions centered in the workplace. Industrial and union paternalism was reinforced by a gender ideology that emphasized women’s domesticity. It served to restrict the participation of women in labor organizations and limit their role in union-led strike movements. Women have only vague and inaccurate recollection of the strikes that were effectively organized when they themselves were part of the work force. They also idealize the paternalistic organization of the factory and the owner who put it in place. At the same time, the textile mill’s reliance on a female labor force enhanced the position of women in their household. A right to a house or house lot and a paycheck made other members of the domestic group dependent on her. It resulted on more egalitarian gender relations within the “backyard of the factory” than within the factory itself. It indicates that gender relations, as well as class relations, do not interlock in fixed ways but that they are flexible and fluid, varying according to the sphere where men and women interact.” (SARDENBERG, 1977, p.xiii-xiv). 

Concluída em agosto de 1996, a tese foi defendida em dezembro do mesmo ano, tendo como membros da banca, além da Profa. Dra. Sutti Ortiz, minha orientadora, e o Prof. Dr. Charles Lindholm, como Segundo Leitor, as Professoras Doutoras Susan Eckstein, Regina Blaszczyk e Jenny White, todas da Boston University.  De acordo com os regulamentos da Boston University, contudo, o título de “PhD in Anthropology” só foi concedido em Janeiro de 1997,[9] tendo sido posteriormente revalidado no Brasil pela Universidade Federal da Bahia.[10] Mais à frente, nos capítulos sobre Atividades de Pesquisa e Publicações, delinearei os desdobramentos da tese doutoral ao longo dos anos.






[1] Comprovante No.28
[2] Comprovante No.29
[3] Comprovante No.30
[4] Comprovante No.31
[5] Comprovante No.32
[6] Comprovante No.33
[7] Comprovante No.34
[8] Comprovante No.35
[9] Comprovante No.36
[10] Comprovante No.37

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