UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA
MEMORIAL
DE TÍTULOS PARA PROGRESSÃO FUNCIONAL À
PROFESSORA
TITULAR
CECILIA
MARIA BACELLAR SARDENBERG
Professora
Associada IV
Departamento
de Antropologia
Matrícula SIAPE : 0282875
Período para Progressão: de 01/06/2012 a 30/05/2014
Salvador,
Bahia
Março,
2016
INTRODUÇÃO
Conquistar o título de “Professora Titular de
Antropologia” da Universidade Federal da Bahia será para mim a coroação de uma
longa jornada profissional. Para tanto,
sou levada a elaborar este “Memorial de Títulos”, que deverá dar conta de tudo
quanto tem sido minha aventura antropológica, como antropóloga feminista, nos meus
quarenta e alguns anos de vida acadêmica.
Segundo rezam os manuais, tal ‘Memorial’
deverá apresentar uma análise crítica dessas atividades e do período de
formação profissional da narradora, valendo-se, para tanto, de uma forma
discursiva, circunstanciada e de uma perspectiva histórica. Trata-se, por assim
dizer, de um ‘comentário analítico sobre o percurso acadêmico e títulos
apresentados’ (SOVIK, 1997, p.1), ou de um ‘retrato crítico do indivíduo visto
por múltiplas facetas através dos tempos’(NOVAES, 1985, p.35).
Mas há de se lembrar: um ‘memorial’, tal como
as autobiografias e outras formas de memórias, faz parte do campo das
‘autoralidades’, ou seja, dos “[...] discursos de construção de selves que, quando lidos, se transformam
em comunicados entre sujeitos participantes de um circuito comunicativo”
(SCHMIDT apud VERSIANI, 2005, p.23).
Pode-se mesmo falar do ‘memorial’ como uma ‘autoetnografia’, ou como uma
vertente mais realista da escrita de si (KILNER, 2006, p.15).
De fato, ao assumir esta tarefa, vejo-me
frente às mesmas dificuldades postas para antropólogos e antropólogas na
elaboração de uma etnografia: Como construir uma narrativa que se quer
‘ostensivamente científica’ a partir de uma experiência fundamentalmente
‘biográfica’ (GEERTZ, 2009, p.22)? Como
elaborar e me situar em um texto proposto como ‘perspectiva íntima’ e,
ao mesmo tempo, ‘avaliação distanciada’ desse meu caminhar na construção de um
saber antropológico que se quer
feminista? E como cavar fundo nos lastros desse caminho sem expor minhas
vulnerabilidades – ou melhor, como não deixar de fazê-lo?
Para mim, pelo menos, será impossível deixar
a emoção de lado em uma escrita ‘vulnerável’ por definição. Sobre essa questão nos
alerta Ruth Behar (1996, p.14, minha tradução), ao falar de uma etnografia
vulnerável: “Vulnerabilidade não significa que vale qualquer coisa. A exposição
do self que também é um expectador
deve nos levar a lugares aos quais não poderíamos chegar de outra forma. Deve
ser essencial ao argumento, não uma manobra decorativa, não exposição por si
só.”
Deverei,
pois, ir fundo no pessoal, mas mostrando as conexões, intelectuais e
emocionais, entre os meandros do meu caminhar. Deverei buscar em minha
trajetória os aspectos e instâncias vividas que foram os principais filtros por
meio dos quais vim a perceber o mundo, fazer escolhas, estudar antropologia,
ingressar na vida acadêmica e escrever o que escrevo. Mas, como delimitar com
precisão a posição de onde parti e os caminhos por onde enveredei nesse
processo? Como poderei reconhecer e distinguir ‘acaso de necessidade’ ou, por
assim dizer, as ‘artimanhas do acaso’ (PEIRANO, 1997) nesse meu caminhar? E
como voltar a percorrer na memória os vários meandros desse caminho sem
impregná-los da lógica do presente?
Penso como Margaret Rago (2013, p.43)
que “[...] a escrita de si é uma grande
aventura – a “aventura de contar-se”. E,
nesse “espaço autobiográfico cabem não apenas diferentes tipos de narrativas de
si (blogs, memórias, diários, e poderíamos acrescentar também o ‘memorial de
títulos’), como também diferentes estilos de narrativas - do ‘confessional’ a
uma verdadeira ‘prática de autoconstituição’ (2013, p.55) ou de subjetivação,
que nos permite “cartografar a própria subjetividade,” rompendo com os códigos
normativos que nos foram impostos (2013, p.43).
Certo é, porém, que nosso autoconhecimento é
sempre incompleto e só pode ser entendido em relação ao mundo social mais amplo
que nos precedeu e moldou (BUTLER, 2015). Porque o sujeito se constitui na ação
e em redes de relações em que vivencia a experiência (RAGO, 2013, p.42-43),
razão pela qual a subjetividade não só se mostra múltipla e contraditória, como
também relacional e situacional. Essa perspectiva, no dizer de Daniela Versiani (2005, p.232), “[...]
pressupõe a complexidade e singularidade do self
como somatório e acúmulo de suas múltiplas pertenças, decorrentes de sua
singular trajetória de identificações com diferentes grupos socioculturais,
memórias e tradições [...]”. Isso nos obriga a “[...] uma reflexão sobre suas
implicações para a produção de conhecimento formal, produzido por sujeitos
localizados nos espaços institucionalizados das academias”. Quer dizer, diz
respeito também ao que produzimos como ‘memorial de títulos’.
Entendo que a construção da subjetividade
perpassa a da identidade, esta também vista como múltipla e contraditória, vez
que nenhum demarcador de identidade, a exemplo de gênero, pode ser entendido
sozinho. Precisa ser pensado em relação aos demais que o entrecortam, tal como
raça, classe, idade, geração, sexualidade, dentre outros. E, a depender das
matrizes de opressão vigentes em diferentes sociedades, no tempo e no espaço,
cada situação implicará em um contexto distinto de intersecção e, portanto, de
poder e (des)empoderamento para sujeitos diferentemente posicionados
(SARDENBERG, 2015).
A identidade de uma pessoa é o produto de
várias posições de sujeito distintas, mas, os diferentes marcadores de
identidade não têm o mesmo peso em diferentes situações. Se em uma dada
situação gênero emerge como o marcador mais relevante, em outra, pode ser raça
ou classe. O contexto pode criar condições para nos tornar mais vulneráveis ou,
ao contrário, nos permitir ter mais privilégios. Não por acaso, as teorias
feministas da identidade e subjetividade trabalham hoje com uma retórica de
espacialidade, argumentando que: “Ao invés da perspectiva individualista dos
modelos de desenvolvimento, na nova geografia figura a identidade como um sítio
historicamente imbricado, uma posicionalidade, uma situação, um ponto de vista,
uma intersecção, uma rede, uma encruzilhada de múltiplos conhecimentos situados”
(FREEDMAN, 1998, p.19, minha tradução).
Por tudo isso, ao enveredar por esta aventura
de contar-me, deverei me situar pelos diferentes espaços que cruzei, delineando
minhas diferentes ‘posicionalidades’ neles, ou seja, como gênero, classe, raça,
etnia, sexualidade, geração e nacionalidade, situação de deficiência ou
não, dentre outros tantos marcadores
sociais, se intersectaram nesses diferentes contextos ao longo da minha
trajetória, ora me posicionando em diferentes situações de vulnerabilidade, ora
de usufruto de privilégios (SARDENBERG, 2015).
Acredito que, para melhor me situar nessas
diferentes posições que marcaram minha trajetória de vida e acadêmica, a noção
de outsider within, ou de ‘forasteira
dentro’, cunhada por Patricia Hill Collins (1986), me será fundamental.
Patricia Hill-Collins propôs essa noção de ‘forasteira dentro’ tendo por base a
experiência das negras norte-americanas que trabalhavam como empregadas
domésticas, sendo consideradas ‘parte da família’, mas sabendo que não pertenciam
de fato a essas famílias brancas. Outsider
within é, portanto, a situação de quem está dentro, mas não pertence, uma
situação marginal que oferece, no caso dessas mulheres negras, uma perspectiva
distinta sobre elas próprias, sobre família e sociedade. Da mesma forma, também
as mulheres negras no mundo acadêmico estão em uma situação de ‘forasteiras
dentro’, tendo acesso ao mundo acadêmico por meio do seu treinamento e
diplomas, mas nunca, de fato, pertencendo à ‘roda’, uma situação ou perspectiva
que lhes tem permitido elaborar uma análise distinta de raça, classe e gênero.
Identifico esse marco de ‘forasteira dentro’
como definidor do próprio exercício da “observação participante”, fundamental
na construção da etnografia nos moldes antropológicos. E marco esse também
presente em minha vida desde a mais tenra idade pelo fato de, por um acidente
de parto, ter nascido com uma paralisia visual, hoje mais ou menos superada,
mas que na infância me colocava nas margens. Uma situação que tentei superar
com a dança, com minhas habilidades no bambolê e sendo uma boa aluna!
Da mesma forma, o fato de ser menina de
classe média, filha de bancário, mas estudando em colégios de ‘burguesas’ e
‘aristocratas’, sempre me fez sentir, por assim dizer, como um peixe fora d’água.
Também as questões de nacionalidade, de classe e de raça que vieram à baila com
minha experiência de estudante do Brasil no exterior, depois, como jovem esposa
morando em um trailer court ao lado
de uma base aérea no sul dos Estados Unidos;
ou como estudante estrangeira em Boston e paulista paulistana na Bahia,
contribuíram para que eu me sentisse uma ‘forasteira dentro’ por grande parte
da minha vida.
Tal situação é análoga à noção de
‘consciência mestiça’ com que trabalha Gloria Anzaldúa (2000), uma poeta
feminista chicana e lésbica, radicada nos Estados Unidos, assim delineada por
ela própria:
“Comecei a pensar: “Sim, sou chicana, mas só
isso não define quem eu sou. Sim, sou mulher, mas isso por si só também não me
define. Sim, sou lésbica, mas isso não define tudo que sou. Sim, venho da
classe proletária, mas não sou mais da classe proletária. Sim, venho de uma
mestiçagem, mas quais são as partes dessa mestiçagem que se tornam
privilegiadas? Só a parte espanhola, não a indígena ou negra.” Comecei a pensar
em termos de consciência mestiça. O que acontece com gente como eu que está ali
no entrelugar de todas essas categorias diferentes? O que é que isso faz com
nossos conceitos de nacionalismo, de raça, de etnia, e mesmo de gênero? Eu
estava tentando articular e criar uma teoria de existência nas fronteiras.
[...] Eu precisava, por conta própria, achar algum outro termo que pudesse
descrever um nacionalismo mais poroso, aberto a outras categorias de
identidade. “ (ANZALDÚA apud LIMA, 2005, p.691).
Como espero demonstrar neste memorial, esse
sentimento de ‘entrelugar’ tem marcado minha trajetória, minhas andanças e
mudanças, ‘prá lá e prá cá’, entre Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, ou
entre São Paulo e Salvador. Creio mesmo que meus deslocamentos no espaço,
geográfico, social e cultural me levaram a romper com meus condicionamentos de
classe, raça/etnia e de gênero, dentre outros, propiciando o desabrochar em mim
dessa ‘consciência mestiça’ de que nos fala Anzaldúa.
Mas, em 1980, em meio a essas andanças, aportei
na Bahia, fiz concurso para a cadeira de Teoria Antropológica no Departamento
de Antropologia da Universidade Federal da Bahia-UFBA e, sendo aprovada e
contratada em 1982, aqui fiquei. No ano seguinte (1983), junto com amigas
queridas – Ana Alice Alcantara Costa, Alda Britto da Motta, Maria Luiza Belloni
e Maria Amélia Almeida – fiz parte do grupo de feministas que criou o Núcleo de
Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA, o ‘meu lugar’ desde
então. Por isso mesmo, a história do NEIM
merece um lugar especial na minha história – razão pela qual incluo, nos
anexos, cópia do livreto que elaborei por ocasião do seu 15º aniversário
(SARDENBERG, 1998), bem como da minha conferência no seu 25º (SARDENBERG,
2008).
De fato, espero que fique evidente ao longo
deste memorial, pela leitura dos textos acima referidos e por dois textos
escritos sobre Ana Alice in memoriam,
também anexados a este memorial, o seguinte: a partir da criação do NEIM, minha
vida acadêmica se entrelaça à própria história do NEIM e, de muitas formas, à
de Ana Alice Costa, que nos deixou para sempre há um ano (SARDENBERG, 2015a,
2015b).
Na verdade, desde que ela se foi, tentei
várias vezes retomar a elaboração deste memorial, iniciada tempos antes, quando
ainda planejávamos fazer uma defesa compartilhando a mesma banca. Mas empaquei
esse ano todo, desde o seu falecimento, por não conseguir falar da minha
trajetória no NEIM sem minha amiga.
Concluí, por fim: na medida em que nossas lutas para avançar o Feminismo
Acadêmico no Brasil se entrelaçam, escrever sobre elas é também narrar a
trajetória de Ana Alice nessa história.
Sou grata a Roberto Cardoso de Oliveira
(p.32), por afirmar que “[...] o texto
não espera que seu autor tenha, primeiro, todas as respostas para, só então,
poder ser iniciado.” E como o mesmo
autor acrescenta: “É no processo de redação de um texto que nosso pensamento
caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da
textualização dos dados da observação sistemática.” Portanto, melhor seguir em
frente, narrando esta minha ‘aventura.’ Vamos
a ela!
Nenhum comentário:
Postar um comentário