domingo, 3 de abril de 2016

Capa e Introdução ao Memorial de Títulos





UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA E ETNOLOGIA  








MEMORIAL DE TÍTULOS PARA PROGRESSÃO FUNCIONAL À

PROFESSORA TITULAR








CECILIA MARIA BACELLAR SARDENBERG
Professora Associada IV
Departamento de Antropologia
Matrícula SIAPE :  0282875



Período para Progressão:  de 01/06/2012 a 30/05/2014






Salvador, Bahia
Março, 2016


 INTRODUÇÃO

Conquistar o título de “Professora Titular de Antropologia” da Universidade Federal da Bahia será para mim a coroação de uma longa jornada profissional.  Para tanto, sou levada a elaborar este “Memorial de Títulos”, que deverá dar conta de tudo quanto tem sido minha aventura antropológica, como antropóloga feminista, nos meus quarenta e alguns anos de vida acadêmica.
Segundo rezam os manuais, tal ‘Memorial’ deverá apresentar uma análise crítica dessas atividades e do período de formação profissional da narradora, valendo-se, para tanto, de uma forma discursiva, circunstanciada e de uma perspectiva histórica. Trata-se, por assim dizer, de um ‘comentário analítico sobre o percurso acadêmico e títulos apresentados’ (SOVIK, 1997, p.1), ou de um ‘retrato crítico do indivíduo visto por múltiplas facetas através dos tempos’(NOVAES, 1985, p.35). 
Mas há de se lembrar: um ‘memorial’, tal como as autobiografias e outras formas de memórias, faz parte do campo das ‘autoralidades’, ou seja, dos “[...] discursos de construção de selves que, quando lidos, se transformam em comunicados entre sujeitos participantes de um circuito comunicativo” (SCHMIDT apud VERSIANI, 2005, p.23).  Pode-se mesmo falar do ‘memorial’ como uma ‘autoetnografia’, ou como uma vertente mais realista da escrita de si (KILNER, 2006, p.15).
De fato, ao assumir esta tarefa, vejo-me frente às mesmas dificuldades postas para antropólogos e antropólogas na elaboração de uma etnografia: Como construir uma narrativa que se quer ‘ostensivamente científica’ a partir de uma experiência fundamentalmente ‘biográfica’ (GEERTZ, 2009, p.22)? Como  elaborar e me situar em um texto proposto como ‘perspectiva íntima’ e, ao mesmo tempo, ‘avaliação distanciada’ desse meu caminhar na construção de um saber antropológico que se quer  feminista? E como cavar fundo nos lastros desse caminho sem expor minhas vulnerabilidades – ou melhor, como não deixar de fazê-lo? 
Para mim, pelo menos, será impossível deixar a emoção de lado em uma escrita ‘vulnerável’ por definição. Sobre essa questão nos alerta Ruth Behar (1996, p.14, minha tradução), ao falar de uma etnografia vulnerável: “Vulnerabilidade não significa que vale qualquer coisa. A exposição do self que também é um expectador deve nos levar a lugares aos quais não poderíamos chegar de outra forma. Deve ser essencial ao argumento, não uma manobra decorativa, não exposição por si só.”
 Deverei, pois, ir fundo no pessoal, mas mostrando as conexões, intelectuais e emocionais, entre os meandros do meu caminhar. Deverei buscar em minha trajetória os aspectos e instâncias vividas que foram os principais filtros por meio dos quais vim a perceber o mundo, fazer escolhas, estudar antropologia, ingressar na vida acadêmica e escrever o que escrevo. Mas, como delimitar com precisão a posição de onde parti e os caminhos por onde enveredei nesse processo? Como poderei reconhecer e distinguir ‘acaso de necessidade’ ou, por assim dizer, as ‘artimanhas do acaso’ (PEIRANO, 1997) nesse meu caminhar? E como voltar a percorrer na memória os vários meandros desse caminho sem impregná-los da lógica do presente?
Penso como Margaret Rago (2013, p.43) que  “[...] a escrita de si é uma grande aventura – a “aventura de contar-se”.  E, nesse “espaço autobiográfico cabem não apenas diferentes tipos de narrativas de si (blogs, memórias, diários, e poderíamos acrescentar também o ‘memorial de títulos’), como também diferentes estilos de narrativas - do ‘confessional’ a uma verdadeira ‘prática de autoconstituição’ (2013, p.55) ou de subjetivação, que nos permite “cartografar a própria subjetividade,” rompendo com os códigos normativos que nos foram impostos (2013, p.43).
Certo é, porém, que nosso autoconhecimento é sempre incompleto e só pode ser entendido em relação ao mundo social mais amplo que nos precedeu e moldou (BUTLER, 2015). Porque o sujeito se constitui na ação e em redes de relações em que vivencia a experiência (RAGO, 2013, p.42-43), razão pela qual a subjetividade não só se mostra múltipla e contraditória, como também relacional e situacional. Essa perspectiva, no dizer de  Daniela Versiani (2005, p.232), “[...] pressupõe a complexidade e singularidade do self como somatório e acúmulo de suas múltiplas pertenças, decorrentes de sua singular trajetória de identificações com diferentes grupos socioculturais, memórias e tradições [...]”. Isso nos obriga a “[...] uma reflexão sobre suas implicações para a produção de conhecimento formal, produzido por sujeitos localizados nos espaços institucionalizados das academias”. Quer dizer, diz respeito também ao que produzimos como ‘memorial de títulos’.
Entendo que a construção da subjetividade perpassa a da identidade, esta também vista como múltipla e contraditória, vez que nenhum demarcador de identidade, a exemplo de gênero, pode ser entendido sozinho. Precisa ser pensado em relação aos demais que o entrecortam, tal como raça, classe, idade, geração, sexualidade, dentre outros. E, a depender das matrizes de opressão vigentes em diferentes sociedades, no tempo e no espaço, cada situação implicará em um contexto distinto de intersecção e, portanto, de poder e (des)empoderamento para sujeitos diferentemente posicionados (SARDENBERG, 2015). 
A identidade de uma pessoa é o produto de várias posições de sujeito distintas, mas, os diferentes marcadores de identidade não têm o mesmo peso em diferentes situações. Se em uma dada situação gênero emerge como o marcador mais relevante, em outra, pode ser raça ou classe. O contexto pode criar condições para nos tornar mais vulneráveis ou, ao contrário, nos permitir ter mais privilégios. Não por acaso, as teorias feministas da identidade e subjetividade trabalham hoje com uma retórica de espacialidade, argumentando que: “Ao invés da perspectiva individualista dos modelos de desenvolvimento, na nova geografia figura a identidade como um sítio historicamente imbricado, uma posicionalidade, uma situação, um ponto de vista, uma intersecção, uma rede, uma encruzilhada de múltiplos conhecimentos situados” (FREEDMAN, 1998, p.19, minha tradução).
Por tudo isso, ao enveredar por esta aventura de contar-me, deverei me situar pelos diferentes espaços que cruzei, delineando minhas diferentes ‘posicionalidades’ neles, ou seja, como gênero, classe, raça, etnia, sexualidade, geração e nacionalidade, situação de deficiência ou não,  dentre outros tantos marcadores sociais, se intersectaram nesses diferentes contextos ao longo da minha trajetória, ora me posicionando em diferentes situações de vulnerabilidade, ora de usufruto de privilégios (SARDENBERG, 2015).
 Acredito que, para melhor me situar nessas diferentes posições que marcaram minha trajetória de vida e acadêmica, a noção de outsider within, ou de ‘forasteira dentro’, cunhada por Patricia Hill Collins (1986), me será fundamental. Patricia Hill-Collins propôs essa noção de ‘forasteira dentro’ tendo por base a experiência das negras norte-americanas que trabalhavam como empregadas domésticas, sendo consideradas ‘parte da família’, mas sabendo que não pertenciam de fato a essas famílias brancas. Outsider within é, portanto, a situação de quem está dentro, mas não pertence, uma situação marginal que oferece, no caso dessas mulheres negras, uma perspectiva distinta sobre elas próprias, sobre família e sociedade. Da mesma forma, também as mulheres negras no mundo acadêmico estão em uma situação de ‘forasteiras dentro’, tendo acesso ao mundo acadêmico por meio do seu treinamento e diplomas, mas nunca, de fato, pertencendo à ‘roda’, uma situação ou perspectiva que lhes tem permitido elaborar uma análise distinta de raça, classe e gênero.
Identifico esse marco de ‘forasteira dentro’ como definidor do próprio exercício da “observação participante”, fundamental na construção da etnografia nos moldes antropológicos. E marco esse também presente em minha vida desde a mais tenra idade pelo fato de, por um acidente de parto, ter nascido com uma paralisia visual, hoje mais ou menos superada, mas que na infância me colocava nas margens. Uma situação que tentei superar com a dança, com minhas habilidades no bambolê e sendo uma boa aluna!
Da mesma forma, o fato de ser menina de classe média, filha de bancário, mas estudando em colégios de ‘burguesas’ e ‘aristocratas’, sempre me fez sentir, por assim dizer, como um peixe fora d’água. Também as questões de nacionalidade, de classe e de raça que vieram à baila com minha experiência de estudante do Brasil no exterior, depois, como jovem esposa morando em um trailer court ao lado de uma base aérea no sul dos Estados Unidos;  ou como estudante estrangeira em Boston e paulista paulistana na Bahia, contribuíram para que eu me sentisse uma ‘forasteira dentro’ por grande parte da minha vida.
Tal situação é análoga à noção de ‘consciência mestiça’ com que trabalha Gloria Anzaldúa (2000), uma poeta feminista chicana e lésbica, radicada nos Estados Unidos, assim delineada por ela própria:
“Comecei a pensar: “Sim, sou chicana, mas só isso não define quem eu sou. Sim, sou mulher, mas isso por si só também não me define. Sim, sou lésbica, mas isso não define tudo que sou. Sim, venho da classe proletária, mas não sou mais da classe proletária. Sim, venho de uma mestiçagem, mas quais são as partes dessa mestiçagem que se tornam privilegiadas? Só a parte espanhola, não a indígena ou negra.” Comecei a pensar em termos de consciência mestiça. O que acontece com gente como eu que está ali no entrelugar de todas essas categorias diferentes? O que é que isso faz com nossos conceitos de nacionalismo, de raça, de etnia, e mesmo de gênero? Eu estava tentando articular e criar uma teoria de existência nas fronteiras. [...] Eu precisava, por conta própria, achar algum outro termo que pudesse descrever um nacionalismo mais poroso, aberto a outras categorias de identidade. “ (ANZALDÚA apud LIMA, 2005, p.691).

Como espero demonstrar neste memorial, esse sentimento de ‘entrelugar’ tem marcado minha trajetória, minhas andanças e mudanças, ‘prá lá e prá cá’, entre Brasil, Estados Unidos e Inglaterra, ou entre São Paulo e Salvador. Creio mesmo que meus deslocamentos no espaço, geográfico, social e cultural me levaram a romper com meus condicionamentos de classe, raça/etnia e de gênero, dentre outros, propiciando o desabrochar em mim dessa ‘consciência mestiça’ de que nos fala Anzaldúa.
Mas, em 1980, em meio a essas andanças, aportei na Bahia, fiz concurso para a cadeira de Teoria Antropológica no Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia-UFBA e, sendo aprovada e contratada em 1982, aqui fiquei. No ano seguinte (1983), junto com amigas queridas – Ana Alice Alcantara Costa, Alda Britto da Motta, Maria Luiza Belloni e Maria Amélia Almeida – fiz parte do grupo de feministas que criou o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA, o ‘meu lugar’ desde então.  Por isso mesmo, a história do NEIM merece um lugar especial na minha história – razão pela qual incluo, nos anexos, cópia do livreto que elaborei por ocasião do seu 15º aniversário (SARDENBERG, 1998), bem como da minha conferência no seu 25º (SARDENBERG, 2008).
De fato, espero que fique evidente ao longo deste memorial, pela leitura dos textos acima referidos e por dois textos escritos sobre Ana Alice in memoriam, também anexados a este memorial, o seguinte: a partir da criação do NEIM, minha vida acadêmica se entrelaça à própria história do NEIM e, de muitas formas, à de Ana Alice Costa, que nos deixou para sempre há um ano (SARDENBERG, 2015a, 2015b).
Na verdade, desde que ela se foi, tentei várias vezes retomar a elaboração deste memorial, iniciada tempos antes, quando ainda planejávamos fazer uma defesa compartilhando a mesma banca. Mas empaquei esse ano todo, desde o seu falecimento, por não conseguir falar da minha trajetória no NEIM sem minha amiga.  Concluí, por fim: na medida em que nossas lutas para avançar o Feminismo Acadêmico no Brasil se entrelaçam, escrever sobre elas é também narrar a trajetória de Ana Alice nessa história.
Sou grata a Roberto Cardoso de Oliveira (p.32), por afirmar que  “[...] o texto não espera que seu autor tenha, primeiro, todas as respostas para, só então, poder ser iniciado.”  E como o mesmo autor acrescenta: “É no processo de redação de um texto que nosso pensamento caminha, encontrando soluções que dificilmente aparecerão antes da textualização dos dados da observação sistemática.” Portanto, melhor seguir em frente, narrando esta minha ‘aventura.’  Vamos a ela!

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